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Filme da Semana do Sadovski: Vício Inerente

Roberto Sadovski

28/03/2015 05h47

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A certa altura de Vício Inerente, novo filmaço de Paul Thomas Anderson, fica quase impossível entender exatamente o que diabos pretende Doc Sportello (Joaquin Phoenix), investigador particular que, contratado por uma ex-namorada para descobrir um esquema de extorsão contra seu atual amante, entra numa espiral em que uma nova pista não só alimenta a anterior como também muda o foco da investigação, ao ponto que é difícil apontar o que exatamente ele está procurando. Não é ao acaso. Baseado no livro de Thomas Pynchon, Anderson aproveita a atmosfera lisérgica da cronologia do filme (Califórnia, começo dos anos 70, auge da contracultura, do movimento hippie, da paranóia generalizada contra o "sistema", de caretas vs. malucos, de muita, mas muita droga) e constroi um quebra-cabeças que, quando pensamos fazer sentido, percebemos que não é nada daquilo. Uma viagem de ácido em celulóide resumida em 149 minutos na sala escura.

Que P.T. Anderson, mais uma vez diretor e roteirista, consiga esse feito, é testemunho de seu enorme talento como realizador. Confesso que estava com preguiça do cineasta depois de O Mestre, uma egotrip brilhantemente executada mas que, no final, ia do nada a lugar algum. Ainda assim, é um tropeço mínimo na carreira (curta) do sujeito que criou as obras-primas modernas Boogie Nights, Magnolia e, principalmente, Sangue Negro. Se Vício Inerente não alcança o mesmo teto é menos "culpa" de Anderson e mais do material original: no papel, o excesso de tramas paralelas prejudica o que é, para resumir, uma história bacana sobre um detetive que fuma erva demais. Boa parte da narrativa é abandonada ou resolvida sem muita consequência, em especial o assassinato que coloca Doc frente a frente com seu nêmesis na polícia de Los Angeles, Bigfoot Bjornsen (Josh Brolin, devorando o cenário, às vezes literalmente, em atuação brilhante). Personagens pipocam em cena, são removidos fora de cena e não se fala mais nisso. Ainda assim, Anderson é fiel ao espírito de Pynchon e substitui coerência por uma energia cinética, humor nervoso, uma dose de anarquia e um elenco (que traz Owen Wilson, Reese Witherspoon, Martin Donovan, Eric Roberts e Benicio Del Toro) nunca abaixo da média.

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Joaquin Phoenix e Paul Thomas Anderson no set de Vício Inerente

Segurando o barco, Joaquin Phoenix (num papel originalmente apontado para Robert Downey Jr.) abraça o papel de Doc Sportello com a displicência de um cachorro que caiu da mudança. Incorporando à risca o visual riponga da época, ele é um protagonista simpático. A composicão de Phoenix para Sportello mistura o Salsicha do Scooby-Doo com a barba de um Wolverine movido a marijuana, cocaína e o que mais surgir. O ator, mais seguro a cada filme, termina sendo o canal perfeito para Anderson contar sua história, e não seria estranho se a parceria, iniciada em O Mestre, tivesse mais repetecos. A grande surpresa, porém, é Katherine Waterston, atriz pouco conhecida que defende Shasta Fay Hetworth, a ex-namorada que dispara o gatilho de toda a trama. Ela é a femme fatale da geração flower power, e um olhar em seu sorriso é o que basta para acreditar que Doc não vai descansar até cumprir o "favor" que ela pediu – a esperança de reatar o rolo é a última que morre.

Talvez pela ambientação na cidade californiana, Vício Inerente traga uma certa semelhança com Los Angeles – Cidade Proibida: um assassinato é o gatilho para uma trama de muitas camadas e uma dúzia de personagens. O que acontece é uma espécie de involução do submundo, passando de um lugar coalhado com celebridades envolvidas com a bandidagem nos anos 50 (isso no filme que Curtis Hanson fez em 1997) para uma América na década de 70 que já não acredita mais em heróis, mergulhada na Guerra do Vietnã, ainda assombrada pela chacina promovida pelos seguidores de Charles Manson e dividida em tribos que, por trás das aparências, mergulham nos mesmos vícios. Vale frisar que, no mundo de Vício Inerente, a violência é mantida no mínimo, não há uma escalada em tensão e quando finalmente a coisa tem de ser resolvida na bala, é uma nota de rodapé em uma história que já passou por muita gente, muitos nomes, muitos pecados e quase nenhuma salvação. É entretenimento. Depois de colocar as mãos em tanto material pesado, é uma ótima surpresa ver que Paul Thomas Anderson ainda sabe, sem muita dificuldade, divertir-se.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.