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Tenso e incômodo, Corrente do Mal é aula de eficiência na criação do terror

Roberto Sadovski

30/08/2015 03h46

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Corrente do Mal é o filme de terror mais inovador e criativo que você verá este ano. Ou em muitos anos, segundo meu oráculo. A premissa irrita de tão simples, e a execução, a cargo do diretor David Robert Mitchell (em seu segundo filme), é uma coisa linda. E para isso ele não teve em mãos um catatau de recursos. O elenco, ótimo, é desconhecido. Efeitos visuais? Claro: enxutos, eficientes, discretos. As locações, escolhidas com brilho, foram nos arredores de Detroit, uma das cidades americanas mais agredidas por crises econômicas, o que contribui para a atmosfera tensa e insalubre do filme. Tudo ao custo estimado de 2 milhões de dólares, uma verdadeira merreca.

Mas Mitchell domina com firmeza a narrativa, e extrai de seu texto um terror incômodo, inesperado. Não existe um monstro, uma entidade que precise ser revelada com alguma maquiagem elaborada ou efeitos digitais canhestros. Para deixar a coisa ainda mais orgânica, a trama é amarrada com uma metáfora nada sutil sobre DSTs – e talvez por isso ela seja tão eficiente, já que o medo do lado de cá é também real. E esse medo é o que adere-se à Jay (Maika Monroe, que será vista ano que vem no novo Independence Day) depois de transar com um ficante, o bonitão Hugh (Jake Weary). O que foi um prazer momentâneo logo toma um rumo bizarro quando Hugh a amarra e explica, em pânico, que ela agora tem uma maldição.

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Maika Monroe sabe que alguém (ou algo) está à espreita em Corrente do Mal

A natureza dessa maldição é o fio condutor de Corrente do Mal. Jay passa a ser perseguida por uma entidade capaz de tomar a forma de qualquer pessoa – desconhecidos ou não. Como os "possuídos" são lentos, ela pode fugir, mas não por muito tempo, e sua única esperança é transar com outra pessoa e passar o problema adiante. O círculo nessa mitologia engenhosa bolada por David Mitchell funciona como um relógio. Só podem enxergar os possuídos quem está (ou esteve) amaldiçoado; a coisa ataca em qualquer lugar e de qualquer maneira; se a pessoa com quem você manteve relações sexuais é morta, o alvo volta a ser você. É um beco sem saída de tensão e desespero, ampliado pela trilha nervosa (à cargo de Disasterpiece) e por um trabalho muito sutil de maquiagem e expressão corporal: a entidade surge como homens ou mulheres, jovens ou velhos, sempre com forte carga sexual, de passo lento e firme e em total silêncio. É o "monstro" perfeito, já que é impossível usar com ele razão, lógica, chantagem, medo. Ele é implacável, invisível e invencível.

O efeito melhor mais ainda com a total indisposição do diretor em explicar a fonte do mal em seu filme: a coisa simplesmente existe, precisa ser vencida ou enganada, e o círculo aparentemente não tem fim. O segredo está na inventividade em lidar com a escassez de recursos e uma boa bagagem do gênero, já que, tirando dois pequenos elementos da "vida moderna" (um livro digital carregado sempre por uma personagem, um celular usado por outra logo no começo do filme), Corrente do Mal poderia muito bem pertencer a três décadas atrás. O passo lento da entidade é claramente uma bela tiração de sarro dos slashers dos anos 80, em que os Jasons da vida se arrastavam e sempre alcançavam as vítimas em disparada. O sexo é outra pista fácil: quem assistiu a Pânico, que Wes Craven fez em 1996, sabe que, para morrer em um filme de terror, basta transar!

Pode parecer simples, mas criar um bom filme de terror exige conhecimento de causa, o que Corrente do Mal tem de sobra. Até Quentin Tarantino, que recentemente teimou em enxergar falhas na mitologia do filme (o que eu não concordo), admite que a obra de David Robert Mitchell é, desde já, um dos grandes filmes do ano. E uma grande lição para quem quer se aventurar pelo gênero, tanto pelo mundo quanto aqui, em nosso quintal, que ainda carece de um bom filme de terror: dinheiro pode faltar; inventividade e paixão, nunca.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.