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Trapaça consolida David O. Russell como grande diretor de atores

Roberto Sadovski

07/02/2014 04h05

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O nome original de Trapaça é American Hustle, ou "golpe americano". Mas o roteiro original tinha um título menos lisonjeiro: American Bullshit. Baboseira, blablablá, papo furado. Bem mais adequado. É a língua afiada a maior arma de Irving Rosenfeld (Christian Bale), golpista profissional que se apaixona por uma alma gêmea, Sydney (Amy Adams). Os dois são coagidos por um agente do FBI, Richie DiMaso (Bradley Cooper), a armar em cima de um político honesto que não tem receio em meter o pé na lama (Jeremy Renner) para prender figurões do governo que aceitam suborno. Ah, para completar a mistura, Irving é casado com Rosalyn (Jennifer Lawrence), zero papas na língua, inconveniente e sempre sensacional. Baboseira. Blablablá. Papo furado.

Direto ao ponto: Trapaça é espetacular. Um filme sobre golpes dentro de golpes em cima de outros golpes, espertamente roteirizado por David O. Russell em parceria com Eric Warren Singer. É delicioso acompanhar a construção e posterior desconstrução dos personagens, quando os riscos da operação se tornam exponencialmente mais altos e tudo caminha para um desastre completo. O golpe envolve bilionários sauditas fajutos, chefões do crime de verdade, um federal egocêntrico e sedento por controle, mulheres tão fatais quanto frágeis e um grupo de atores afiado, conduzido à perfeição pelo maestro O. Russell.

Jennifer Lawrence e Amy Adams em momento luta na lama... sem a lama

Jennifer Lawrence e Amy Adams em momento luta na lama… sem a lama

E pensar que nem faz tanto tempo assim que o diretor era veneno em Hollywood. Sua estréia, Spanking the Monkey, de 1994, é uma pequena pérola com Jeremy Davies. Procurando Encrenca, lançado dois anos depois, lhe deu astros de maior calibre (Ben Stiller, Patricia Arquette, Alan Alda, Josh Brolin, a lista é grande). Mas sua fama de difícil estourou com a obra-prima Três Reis, de 1999. Reza a lenda que a situação no set estava tão insuportável, com O. Russell tratando sua equipe como lixo, que George Clooney chegou a lhe dar uma gravata e dizer que a coisa ficaria ainda mais feia se ele não tomasse jeito. Não tomou, e quando o vídeo de sua explosão com a atriz Lily Tomlin no set de Huckabees – A Vida É uma Comédia, de 2004, foi a público, as portas se fecharam. Genial e genioso, David O'Russell foi para a geladeira.

Coube a Mark Wahlberg, seu protagonista em Huckabees, resgatá-lo. Ele o colocou para tocar o projeto O Vencedor. Seis anos haviam se passado, e de repente O. Russell era um sujeito diferente. Generoso com seu elenco e equipe. Disposto a fazer o trabalho em equipe prosperar. Hollywood adora uma história de retorno, e brindou o filme, a biografia do boxeador Micky Ward e sua relação com o irmão, Dicky Eklund, com sete indicações ao Oscar – incluindo melhor filme. Garfou duas, justamente para seu elenco: Melissa Leo e Christian Bale, premiados como coadjuvantes. O Lado Bom da Vida, de 2012, consagrou Jennifer Lawrence como melhor atriz e ainda teve outras sete indicações, mais uma vez incluindo melhor filme. Trapaça chega à festa do Oscar dia 2 de março com dez chances de levar o careca dourado, elenco principal incluso em peso.

Não mexa no cabelo do Batman!

Não mexa no cabelo do Batman!

De brigão a queridinho da Academia, O. Russell merece os aplausos. Sua habilidade em se comunicar com seu elenco e extrair dele sua melhor performance o assemelha ao diretor de uma trupe teatral, sempre em crescimento, com atores trilhando caminhos familiares com amigos, e não colegas. Christian Bale, Bradley Cooper, Amy Adams e Jennifer Lawrence defendem seu capitão com fervor, e o resultado aparece já na primeira cena, com o astro dos Batman de Christopher Nolan surgindo pançudo e quase careca, cuidadosamente arrumando uma peruca de quinta com cola e um pente ensebado. É uma cena cômica, conduzida com a seriedade de um ataque cardíaco e que aponta o tom do filme.

É engraçado, entretanto, perceber a má vontade que O. Russell ainda desperta. O chamam de "um Martin Scorsese light", o que é uma tremenda bobagem. Apesar de Trapaça habitar um universo familiar ao diretor de Os Bons Companheiros, a pegada é diferente, menos nervosa, mais cômica – embora, não importa o que diga o Globo de Ouro, o filme não seja uma comédia. O tom leve é uma opção narrativa inteligente, até para conferir mais peso quando o golpe parece despedaçar-se e o grupo se vê envolvido com gente da pesada de verdade. A má vontade, por sinal, estende-se à Jennifer Lawrence, atriz de talento palpável e imenso sucesso (a série Jogos Vorazes tem sua estampa), alvo de tantas críticas que ter sucesso e talento parece ter se tornado crime.

David O. Russell dirige seu time

David O. Russell dirige seu time

Trapaça é inspirado na história real de uma operação conduzida pelo FBI no fim dos anos 70, estendendo-se à década seguinte, para investigar corrupção no serviço público. Com a ajuda de um golpista, os federais filmaram dezenas de políticos aceitando suborno em troca de favores políticos. A reconstituição de época é brilhante; os figurinos tão cafonas quanto perfeitos. A discoteca estava no auge, inovações tecnológicas domésticas eram recebidas como dispositivos alienígenas. O sonho americano estava em frangalhos, ninguém confiava mais em políticos. Quem tinha um bom papo e muita cara de pau era rei. Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas. Baboseira. Blablablá. Papo furado. Absolutamente genial!

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.