Topo

Em seu novo filme, Godzilla é uma força da natureza! Já os humanos...

Roberto Sadovski

15/05/2014 08h50

godzilla2014-movie-news-trailer-images

Difícil imaginar o impacto que Godzilla teve quando estreou no Japão. Não esta versão hi-tech do século 21, mas o original, de 1954. Uma década antes, o país vira duas cidades arrasadas pelo poder atômico. No cinema, um monstro criado por essa mesma energia destruidora arrasava Tóquio como se os prédios fossem de papel: uma catarse sem igual. Por este – e por dezenas de outros – motivos, Godzilla tornou-se símbolo do cinema nipônico, ícone de um país que renasce de suas próprias cinzas. O que, no caso, está longe de ser uma metáfora. O lagartão gigante significava algo. Nas décadas seguintes, a alegoria atômica representada pela criatura foi sendo diluída em filmes que o mostraram de monstro destruidor a herói defensor do planeta, combatendo outros bichões bizarros que só poderiam mesmo ser bolados no Japão.

O Ocidente, claro, nunca "pegou" Godzilla, e o equivocado filme que Roland Emmerich dirigiu em 1998, pós-Independence Day, não foi além do disaster porn de seu trabalho anterior, substituindo uma invasão alienígena (ou meteoros, ou qualquer outra catástrofe capaz de reduzir Nova York a pó) pelo monstro. Desfigurado, Godzilla versão Emmerich surgiu como um iguana anabolizado e grávido (!), numa mistura indigesta de ação e humor que, ainda bem, morreu lá atrás. O maior trunfo de Gareth Edwards, responsável pelo novo Godzilla, é devolver ao monstro sua relevância como força bruta da natureza em um espetáculo brutal, talvez sério demais, mas que traz a reverência que um ícone de tamanha estatura (sem trocadilho) merece. Apoiado, claro, pela melhor tecnologia que o cinema moderno tem em sua caixa de brinquedos.

Bryan Cranston e Aaron Taylor-Johnson são as pessoas embaixo dos pés de Godzilla

Bryan Cranston e Aaron Taylor-Johnson são as pessoas embaixo dos pés de Godzilla

Desde a primeira cena, fica claro que Edwards (que tem no currículo um único filme, o interessante – e talvez profético – Monsters) luta para marcar um ponto de vista humano na trama, ancorando a narrativa primeiro em dois cientistas que investigam um fóssil gigante (com ênfase no "gigante") encontrado nas Filipinas, depois num drama familiar. Os primeiros são Ichiro Serizawa (Ken Watanabe) e Vivienne Graham (Sally Hawkings), atordoados com a descoberta dos restos mortais de um gigante, e mais ainda com o rastro deixado por algo vivo que provavelmente o matou. Já os segundos são o cientista Joe Brody (Bryan Cranston) e sua mulher, Sandra (Juliette Binoche), que trabalham em uma usina nuclear no Japão. Um acidente causado por um agente externo causa um derretimento nuclear; Sandra morre, o lugar é isolado em quarentena.

Quinze anos depois entra em cena o verdadeiro protagonista de Godzilla: Ford (Aaron Taylor-Johnson), filho de Joe, soldado voltando para sua família em São Francisco, obrigado a voar para o Japão e livrar o pai da prisão. Obcecado em provar que o desastre não foi natural, Joe acredita que o mesmo padrão observado no dia em que sua mulher morreu está prestes a se repetir. O cenário é armado para o surgimento das criaturas que causaram o acidente nuclear: batizados MUTO (Massive Unidentified Terrestrial Organisms, ou "organismo terrestre gigante não identificado"), separados geograficamente por continentes e oceanos, eles se alimentam de radiação, deixam seu casulo e estão prontos para procriar e, a grosso modo, encerrar o capítulo da raça humana na Terra. Entra em cena Godzilla, identificado por Serizawa como um agente de equilíbrio, um anticorpo do próprio planeta para erradicar ameaças globais como os MUTO.  É o começo de uma caçada em que os humanos não passam de incômodos, de danos colaterais quando forças da natureza entram em conflito.

Os olhos de Ken Watanabe merecem um filme só para eles

Os olhos de Ken Watanabe merecem um filme só para eles

Gareth Edwards constrói a trama com cuidado e uma preocupação constante em manter a ação sob o ponto de vista primeiro de Joe, depois de Ford. É uma escolha interessante, mesmo que ela deixe os monstros gigantes em segundo plano. O que é de se esperar, já que o modelo mais óbvio seguido pelo diretor é Tubarão, obra-prima de Steven Spielberg (batizar o protagonista de "Brody" está longe de ser ao acaso). Assim, as criaturas começas a se digladiar sempre à distância, ou mostradas em noticiários de TV, como o primeiro combate que arrasa Hong Kong. A verdade é que cada composição de cena e cada decisão narrativa é Edwards tentando ser Spielberg em Jurassic Park, ou Spielberg em Guerra dos Mundos. Não seria uma decisão equivocada se as pessoas em Godzilla tivessem mais vida, mais sangue nos olhos!

Tubarão é um triunfo por ter um trio de protagonistas – Roy Scheider, Richard Dreyfusss e Robert Shaw – como personagens complexos e completos; o mesmo pode ser dito de Jeff Goldblum e Sam Neill no Parque dos Dinossauros. Guerra dos Mundos estava nos ombros de Tom Cruise, mas Tom Cruise é uma fonte inesgotável de carisma! Bryan Cranston faz o que pode com seu Joe Brody, que é despachado assim que sua utilidade narrativa esgota. Ken Watanabe, um gigante de talento, fica reduzido ao papel de "homem exposição", explicando o que acontece, com os olhos estranhamente arregalados. É certo que os personagens humanos em todos os Godzilla são pouco mais que caricaturas, um jogo de ligar os pontos para traçar o caminho de destruição do verdadeiro astro. Mas a platéia de 2014 não é a de 1954, já estamos calejados com tanta destruição digital, uma âncora humana é essencial para conectar o público, para que a gente se importe do lado de cá.

Godzilla, como sempre, atrapalhando o trânsito...

Godzilla, como sempre, atrapalhando o trânsito…

Por isso que Gareth Edwards é feliz em recriar uma mitologia para seu Godzilla, sugerindo que criaturas como ele dominavam o planeta eras atrás, quando a atmosfera era muito mais carregada de radiação, e que hoje eles vivem em hibernação: a pseudo ciência faz bom uso da seriedade dos personagens e se torna plausível. Outra boa sacada são os MUTO, criaturas que não trazem o peso icônico de inimigos clássicos de Godzilla como Mothra (se você piscar, perde a referência no filme) ou Ghidora, e podem ser odiadas à vontade. Se as pessoas neste novo filme são descartáveis, o caminho está livre para trazer novos protagonistas no futuro – tenho certeza que ninguém sentirá a falta de Shia LaBeouf no próximo Transformers. E Aaron Taylor-Johnson, tão cheio de vida quando interpreta o herói Kick-Ass, surge apático no começo mas felizmente ganha cor e se redime no combate final em São Francisco, quando Ford Brody se torna peça-chave na ação, e não só um coadjuvante.

O clímax de Godzilla, por sinal, é de um brilhantismo técnico para aplaudir de pé. Começa com o belíssimo salto halo de soldados entrando em uma zona de guerra tomada por fumaça e destroços e continua com o quebra-pau épico do lagartão contra os MUTO. O ponto de vista no nível do chão é deixado de lado e o filme abraça o espetáculo, em uma coreografia de destruição que o diretor equilibra com tomadas aéreas que mostram o escopo da ação com a câmera entre os monstros em combate – uma sequência que não deve nada à fantástica batalha de Hong Kong entre jaegers e kaijus de Círculo de Fogo. É quando Godzilla finalmente se torna o filme-evento brutal, emocionante, surpreendente e visceral que o Rei dos Monstros merece.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.