Topo

Sniper Americano é um ótimo filme... se você não se importar com a verdade

Roberto Sadovski

19/02/2015 04h04

maxresdefault

A certa altura de Sniper Americano, o atirador de elite Chris Kyle (Bradley Cooper), que já tem uma centena de mortes registradas, enquadra uma criança iraquiana em sua mira. O moleque pega um lança foguetes de um insurgente morto por Kyle e, com dificuldade, aponta o projétil para as tropas americanas. No topo de um prédio, com o dedo no gatilho, o soldado hesita, como se esperasse que a providência divina não colocasse a morte de mais uma criança em seu portfólio. É uma cena tensa, costurada com esmero pelo diretor Clint Eastwood. Fica ainda mais tensa pelo belo trabalho de Cooper, que injeta em seu personagem patriotismo cego e humanidade quebrada, um estranho em casa que se encontrou no campo de batalha, atrás de um rifle de alta precisão. Ali, Kyle finalmente demonstra não ser apenas uma máquina de matar a serviço de uma bandeira, e sua pequena redenção é um grande momento nesta obra de ficção.

Aí você se pergunta: "Como assim, 'obra de ficção'?" É verdade que Sniper Americano é baseado na autobiografia de Kyle, escrita depois de quatro tours no front iraquiano, um retrato da vida do "atirador mais letal da história dos Estados Unidos". É verdade também que o soldado redefiniu o conceito de "verdade" quando escreveu o livro, em parceria com Scott McEwen e Jim DeFelice: uma verdade elástica, que serviu para lhe pintar como um herói maior do que realmente foi, com trechos que não passaram de fruto de sua imaginação. Boa parte dessas histórias veio à luz após a morte do soldado em 2013. Como seu suposto trabalho atirando em saqueadores do alto de um estádio em Nova Orleans, após a devastadora passagem do furacão Katrina (o que foi desmentido pelo governo); os dois ladrões de carros que tentaram lhe assaltar e foram mortos (a polícia não tem nenhum registro do ocorrido); ou os sopapos que ele havia desferido no ex-governador (e ex-ator) Jesse Ventura, quando este supostamente teria feito comentários pouco elogiosos ao governo americano. Aí a coisa pegou, já que Ventura processou Kyle, manteve o processo após sua morte e ganhou alguns milhões na causa, já que o tribunal decretou que o acontecido só existira na imaginação do soldado – o trecho foi posteriormente removido de edições do livro.

Sniper Chris Kyle

O verdadeiro Chris Kyle, que foi morto em 2013, e seu instrumento de trabalho

Daí vem a pergunta: se Chris Kyle mentiu sobre tantas coisas, como acreditar nos outros relatos que ele inseriu em seu livro? O fato é que o exército americano realmente lhe confere um recorde de mortes como atirador – foram 160 baixas confirmadas. Ainda assim, em meio ao caos natural em um conflito, fica complicado separar fato de ficção. Clint Eastwood (que assumiu a função de diretor logo após a desistência de Steven Spielberg), decidiu passar longe de qualquer polêmica, e concentrou Sniper Americano no drama do sujeito que não sabe o que fazer quando não está em meio à guerra: é uma dramatização de uma narrativa, inclusive com a inclusão de personagens e fatos que também não estão no livro, não um documentário. Logo nas primeiras cenas, ele mostra a raiz da escolha de Kyle, quando, ainda criança, ele ouve de seu pai que existe três tipos de pessoas, as ovelhas, os lobos que as caçam e os cães de guarda que devem protegê-las. "Não temos ovelhas nesta famíla", dispara. Os atentados de 11 de setembro foram o estopim para Kyle, já em seus 30 anos, alistar-se, partir para o front e descobrir sua habilidade extrema com um rifle de precisão. Defendendo soldados ianques dos "selvagens", não é difícil imaginar por que Sniper Americano se tornou um fenómeno de bilheteria nos Estados Unidos, com o público indo em massa aos cinemas louvar seu…. errrm…. herói.

Claro que não é este o filme realizado por Eastwood. Longe de abraçar a patriotada estúpida, e indo além do lugar comum dos clichês do gênero, o diretor fez um filme anti-guerra, mais preocupado em explorar as consequências do conflito na cabeça de um americano médio, determinado a "defender seu país", e menos em fazer um libelo para alavancar o alistamento militar. Definitivamente, não é Top Gun – e não é culpa do diretor que uma parcela do público enxergue seu filme de outra forma. Talvez Clint seja um realizador sutil demais e elegante demais, o que pode passar o recado errado. Assim como o Kyle da vida real, Eastwood passa mais tempo no campo de batalha do que mostrando a verdadeira guerra interior quando ele chega em casa – é um paralelo, uma ferramenta narrativa, não uma predileção pelo "filme de guerra".

AMERICAN SNIPER

Bradley Cooper papeia com seu diretor, Clint Eastwood

Isso prejudica, por exemplo, o trabalho de Sienna Miller, que faz o que pode no papel de Taya, a esposa abnegada e condenada a viver com um fantasma. Menos destaque ganha Keir O'Donnell, que interpreta Jeff Kyle, irmão do soldado: em uma breve cena, Chris Kyle vislumbra que as consequências psicológicas de quem se joga em uma guerra podem ser devastadoras quando as bombas param de explodir e as balas não cortam mais o céu. Mas é pouco. A transição de pessoa quebrada pela guerra a pai de família e marido atencioso é abrupta demais para ser totalmente digerida – o que deve ser o maior pecado de Eastwood. Bradley Cooper, por outro lado, entrega mais uma performance poderosa, abraçando sem restrições o soldado disposto a tudo para proteger seus colegas, mas que aos poucos vê que a realidade da guerra não vem embalada em faixas e estrelas. Ele injeta humanidade a Chris Kyle, talvez mais do que o próprio tenha pintado em sua autobiografia, e surge menos como herói e mais como um sujeito em uma situação-limite que ele não faz ideia de como escapar. É a espinha dorsal de Sniper Americano e o principal elemento que mantém o filme acima dos clichês do homem-na-guerra.

Pena que Eastwood, em sua vontade de criar um filme anti-guerra ao mostrar como a mente e a alma de um soldado fica em frangalhos após matar a serviço da pátria, tenha retratado os iraquianos da maneira mais superficial possível: são alvos, são "selvagens", são apenas o inimigo. O nêmesis de Kyle, um sniper iraquiano apelidado Mustafa, ganha vislumbres de quem seria (um ex-atleta olímpico, um homem de família igualmente atormentado por seu trabalho), mas nunca é desenvolvido. Claro que é uma decisão narrativa: mostrar só um lado de um conflito não diminui um filme. Ridley Scott o fez na prática com o espetacular Falcão Negro em Perigo. O próprio Eastwood não se furtou em mostrar dois lados da mesma moeda quando filmou A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima – mesmo conflito, dois filmes, dois pontos de vista. Sniper Americano, no final, é mais um um filme: um bom filme de ficção, dirigido com pulso e elegância. Mas, Clint, brother… a gente podia passar sem aquele bebê-boneco.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.