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Por que as quatro tentativas de filmar Quarteto Fantástico erraram o alvo

Roberto Sadovski

06/08/2015 20h20

Nerdovski: Doutor Destino é a grande decepção de "Quarteto Fantástico"

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Quarteto Fantástico estreia este fim de semana, depois de uma produção conturbada e recheada de intrigas de bastidores que a internet adorou devassar nos últimos meses. Não é o filme terrível que muitos andam pintando, mas está a anos-luz de ser o ponto de partida esperto que a Fox concebeu para relançar a série dos primeiros personagens da Marvel. É o quarto filme com os heróis criados por Stan Lee e Jack Kirby (inexplicavelmente este crédito não está no filme), e pelo visto o diretor Josh Trank não aprendeu com os erros do passado. Que não foram poucos.

A jornada do Quarteto Fantástico para o cinema começou quando o produtor alemão Bernd Eichinger adquiriu os direitos da série para sua Constantin Films (então Neue Constantin) em 1986. Mas os cálculos de orçamento ultrapassavam o que a produtora podia investir sem parceiros, e se o filme não fosse feito, seus direitos reverteriam para a Marvel em dezembro de 1992. Foi quando Eichinger teve a brilhante ideia de convocar o produtor Roger Corman, famoso por seus filmes de orçamento arrastando no chão, para tirar o Quarteto do papel. Não que o chefão da Constantin tivesse a menor intenção de gastar mais um centavo com promoção e lançamento. Mesmo com a produção acompanhada de perto pela imprensa especializada da época (em especial a revista Comics Scene), e com o lançamento agendado para janeiro de 1994 (com trailers no cinema e nas cópias em VHS de Carnossauro, produção de Corman), logo ficou claro que Bernd não tinha intenção de lançar o filme – tudo fora uma manobra para que ele mantivesse os direitos. Embora negasse até sua morte, em 2011, Eichinger terminou vendendo os direitos de seu filme (não dos personagens) para o produtor Avi Arad, pouco antes de a editora começar a investir com mais seriedade em seus "produtos" para cinema. Avi teria destruido todas as cópias existentes de The Fantastic Four.

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Com essas roupas de brechó, ninguém pode estar mesmo feliz…

O que não impediu, claro, que cópias do filme chegassem ao circuito de convenções de quadrinhos. E foi um horror. Com um orçamento de 1 milhão de dólares (que provavelmente não paga nem os motoristas de um filme), o diretor Oley Sassone (famoso por… bom, por nada) fez um filme, claro, pobre. Eu adoraria dizer que o "espírito" dos quadrinhos está presente, escondido atrás da maquiagem grotesca (no mau sentido) do Coisa. Mas não é o caso. Embora seja um "filme de origem" que tente ser fiel à fonte, a impressão passada por The Fantastic Four é que tanto os produtores quanto o diretor sentiam uma vergonha tremenda em fazer um filme…. do Quarteto Fantástico. O elenco, por outro lado, dá o sangue, mas este é o caso de "filme jamais lançado" que mais que se justifica: é IMPOSSÍVEL criar uma aventura como a dos heróis da Marvel sem ter os recursos para que ela se materialize. Por mais que muitos amigos que façam filmes com orçamento zero acreditem no contrário, a regra é clara: dinheiro é fundamental.

O dinheiro veio na forma de 90 milhões de dólares. A Marvel fechou um acordo com a Fox para produzir uma versão decente de Quarteto Fantástico logo após o filme de Corman virar cinzas, e o estúdio contratou Chris Columbus para escrever e dirigir a aventura. Foi o começo de uma dança das cadeiras de roteiristas e diretores, enquanto os manda-chuvas não se decidiam com o rumo que queriam dar para a série. No novo século, Peyton Reed (que dirigiu recentemente Homem-Formiga para a Marvel) quase decolou sua visão, radicalmente diferente do tom mais dark e realista que os filmes de super-heróis começavam a tomar após o primeiro X-Men. Reed queria ambientar seu filme nos anos 60 e fazer uma aventura pop, colorida, mergulhada fundo na ficção científica e no espírito de descobertas da época – a mesma em que Lee e Kirby criaram o Quarteto. Eu tive a oportunidade de ver maquetes e artes conceituais do projeto no escritório do produtor Ralph Winter, na Fox, com alguns personagens já trazendo o rosto de alguns atores que Reed queria em seu filme: Campbell Scott como Reed Richards e Bobby Cannavale como Ben Grimm.

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Todo mundo alinhado… e fora do tom!

No fim, a Fox escolheu Tim Story, e até hoje em me pergunto o que eles viram na comédia Taxi para lhe dar o trampo. Mas o fato é que seu Quarteto Fantástico, lançado em 2005, tornou-se uma colcha de retalhos que não decidia ser um filme infantil, uma comédia, uma aventura de super-heróis ou uma reunião de gente esquisita. A química do elenco principal (Ioan Gruffud, Michael Chiklis, Jessica Alba e Chris Evans) nunca pegou fogo: são caricaturas, nunca personagens. A escolha de Julian McMahon e sua direção como o Dr. Destino eliminou qualquer possibilidade de perigo que o vilão podia oferecer. Se for visto como um filme para crianças de até uns 10 anos, este Quarteto Fantástico é engraçado e seguro – e a bilheteria global de 330 milhões de dólares provou que o caminho, para o bem ou para o mal, podia ser esse. A continuação, lançada dois anos depois, inexplicavelmente manteve Story no comando. Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado introduziu dois ícones da Marvel – o Surfista e o devorador de mundos Galactus, aqui apresentado como uma nuvem de poeira cósmica sem personalidade – e não se deu o trabalho de construir uma trama envolvente em torno deles. Mais uma vez, o tom escrachado e a comédia pastelão apontam o rumo, mas a essa altura os super-heróis no cinema já eram levados a sério o suficiente para que o filme fosse ignorado.

Uma constante nos três filmes com a equipe é simples: os realizadores parecem mesmo ter vergonha de fazer um filme do Quarteto Fantástico. No papel, a criação de Lee e Kirby não é um gibi de super-heróis. É ficção científica, é sobre uma família, é sobre um grupo de aventureiros se jogando rumo ao desconhecido. A sede por descobertas faz com que Reed Richards seja descuidado ao levar Susan Storm, seu irmão Johnny e seu melhor amigo, Ben Grimm, a um voo espacial em que a nave é bombardeada por raios cósmicos. O resultado são as mutações em seu DNA que lhe garantem seus poderes – no caso de Grimm, transformado no Coisa, também lhe custa sua humanidade. A transformação do Quarteto em celebridades foi opção do próprio Reed, para que sua condição de párias fosse melhor aceita pela sociedade. O Dr. Destino também é o vilão perfeito, já que sua origem é ligada a um acidente que poderia ser prevenido se Destino, ou Victor Von Doom, não fosse arrogante a ponto de ignorar o alerta de seu então amigo e achar que ele, sim, estava certo. Eu sou a favor de adaptações, e acho que uma história em quadrinhos – ou um livro, ou uma peça de teatro – podem e devem ser reinterpretados em uma nova visão. Funcionou com X-Men de Bryan Singer. Funcionou com Homem de Ferro. Funcionou absurdamente bem com Guardiões da Galáxia ou com O Cavaleiro das Trevas. Se Mulher-Gato, com Halle Berry, fosse um bom filme, as mudanças da personagem em relação aos gibis seriam irrelevantes! O caso do Quarteto, entretanto, é claramente não consertar o que não está quebrado.

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No novo filme, Sue Storm sequer acompanha o time na viagem fatídica!

O que nos leva ao novo Quarteto Fantástico. Josh Trank fez em Poder Sem Limites, de 2012, uma crônica bacana de como seria o impacto de superpoderes em jovens adolescentes. É um ótimo filme com uma ótima ideia, mas não se encaixa no template do que seria um bom Fantastic Four. Ainda assim, Trank ganhou orçamento e moral para fazer sua versão da superfamília, com a Fox mirando em mais uma série no cinema – se possível, cruzando caminho em algum momento com os X-Men, também sob as asas do estúdio. O diretor acertou em cheio quando mirou na ficção científica para criar seu Quarteto Fantástico, e também acertou no elenco mais jovem, mais espelhado na série Ultimate Fantastic Four, que recriou a origem dos heróis, trocando um voo espacial por exploração interdimensional. O filme funciona quando mostra Reed (Miles Teller) como o gênio capaz de completar a máquina que vai fazer a viagem possível, e também acerta na dinâmica discreta entre os irmãos Susan (Kate Mara) e Johnny Storm (Michael B. Jordan). Ben Grimm (Jamie Bell) parece introduzido na equação ao acaso, o que desmonta a idéia de núcleo familiar sob a qual os heróis foram erguidos em primeiro lugar. Os dois primeiros atos do filme, vistos sem o peso da marca "quarteto fantástico", formam uma ficção científica decente para o público casual. Mas a coisa toma um caminho bizarro no clímax, quando a equipe é finalmente formada – do modo menos orgânico e crível possível – e o filme caminha para seu final como um longo trailer de uma aventura que, aí sim, pode começar.

Para cada acerto do novo filme, portanto, Trank comete erros fundamentais. É possível esticar a origem de seus protagonistas em prol do desenvolvimento de personagens? Claro, Batman Begins é a prova. Mas em um filme de pouco mais de 100 minutos, a tarefa fica quase impossível. A ideia de fazer do Quarteto "prisioneiros" do governo, realizando missões clandestinas em troca de uma possível cura, é bacana? Com certeza, mas ganha tão pouco tempo em cena que não há espaço para que ela seja devidamente desenvolvida. Victor Von Doom (Toby Kebbell), pela quarta vez o vilão em quatro filmes da equipe, é mais uma vez jogado de lado. Sua motivação é a) brigar contra o "sistema" e b) destruir o mundo. E só. Não existe nuance, não existe empatia, só um sujeito com complexo de deus genérico em uma paisagem digital genérica. O maior dos pecados, porém, é a total ausência de humor. O grande barato do Quarteto Fantástico é que a equipe sempre demonstra prazer nas descobertas, existe um clima de eterno otimismo que faz deles a antítese dos X-Men. E que eles são aventureiros. E, em primeiro lugar, uma família. É o que os faz diferentes de tudo que existe no universo Marvel. Mas não foi desta vez. Com um percentual mixuruca de críticas positivas no Rotten Tomatoes, e perspectivas não muito animadoras nas bilheterias, talvez o caminho do Quarteto seja, um dia, voltar para as mãos da Marvel no cinema.

Uma história pra fechar o dia. Estava eu entrevistando Ang Lee na época de seu Hulk, lá atrás, em 2003, outra vida. Lee é um sujeito extremamente animado e apaixonado pelo que faz. Comentei o quanto tinha gostado da dinâmica familiar que ele havia escolhido para o drama Tempestade de Gelo, ao mesmo tempo realista, emocionante e agridoce – o filme, afinal, terminava em tragédia. Tudo é pontuado pelas viagens de trem do personagem de Tobey Maguire, que passa o tempo lendo gibis do Quarteto Fantástico. O papo voltou para Hulk, mas Lee deixou escapar, ao fim da conversa, quase num sussurro: "Eu queria mesmo era fazer Quarteto Fantástico". Quem sabe em um universo paralelo…

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Será que é tão complicado assim traduzir isso aí pro cinema?

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.