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Em Perdido em Marte, Ridley Scott devolve o humor à ficção científica

Roberto Sadovski

01/10/2015 06h00

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Então existe água em Marte. E segue, assim, o fascínio por nosso vizinho cósmico, o "planeta vermelho", fonte inesgotável de mistério e histórias. Claro que não seria o melhor lugar para largar Matt Damon à deriva, mas é exatamente o que acontece em Perdido em Marte, ficção científica arrebatadora que Ridley Scott adapta do livro de Andy Weir. E a questão não é só o quanto o filme é incrível, mas também a facilidade com o que diretor de 77 anos faz tudo parecer tão fácil.

A trama é simples. Uma equipe de astronautas, liderada pela comandante Melissa Lewis (Jessica Chastain), explora a superfície do planeta vermelho. Uma tempestade inesperada faz com que ela ordene uma retirada, mas em meio ao caos, um membro de sua equipe, Mark Watney (Damon), é atingido e jogado à distância. A janela para a equipe deixar Marte é curta, os instrumentos mostram que Mark perdeu seus sinais vitais e, após hesitar, Lewis bate em retirada. Comoção na Terra, a NASA anuncia com pesar a morte de um astronauta, o resto da equipe prepara-se para a longa jornada de volta à Terra.

O que ninguém esperava – talvez nem ele próprio – é que Watney está vivo. Sozinho no ambiente mais hostil para humanos no universo, ele não se deixa tomar pelo desespero. Calcula suas chances para sobreviver, para ser resgatado, o tempo que uma missão de resgate o alcançaria, de que forma fazer contato com a NASA, e logo toma uma decisão, talvez a única aceitável: "Eu não vou morrer nessa p*$$@ desse planeta!". Essa atitude, um senso de humor nervoso, o otimismo irrefreável mesmo ante cada adversidade, impele tanto o personagem de Damon (que aqui se reafirma como grande protagonista, segurando o filme com elegância em seus ombros) quanto o tom impresso por Ridley Scott.

Ao contrário de Gravidade, por exemplo, a ação de Perdido em Marte não foca unicamente nas aventuras de Damon tentando sobreviver num ambiente hostil. O texto esperto de Drew Goddard (O Mistério da Cabana) equilibra a ação com o esforço da NASA em montar algo que se assemelhe a uma missão de resgate, e também com a tripulação da missão à Marte, em que Chastain, mais um elenco bacana que inclui Michael Peña, Kate Mara e Sebastian Stan, discutem se é ou não possível retornar e recuperar o companheiro perdido. É um filme sem vilões, que usa a passagem no tempo de maneira sensata (não há buracos de minhoca e outros artifícios fantásticos para abreviar tempo e espaço em uma jornada nas estrelas) e nunca, em nenhum momento, deixa de lado o senso de diversão. Rodley Scott, por sinal, está à vontade, usando o texto como plataforma para expor um jargão científico pés no chão, misturado a soluções visuais de impacto e sem nunca esquecer que sua função é criar entretenimento. Perdido em Marte é, afinal, uma aventura de ficção científica, e essa mistura de tensão e humor a deixa ainda mais saborosa.

De certa forma, isso faz de Ridley Scott o verdadeiro anti-Christopher Nolan. Explico. Interestelar também foi vendido como uma aventura de ficcão científica, mas em vez de abraçar o prazer das descobertas, o diretor de O Cavaleiro das Trevas perdeu tempo precioso com uma obsessão em tornar tudo "realista" para, no fim, descontar tudo no tal "poder do amor". Tinha uma ambição gigante em ser uma obra "relevante" (sim, vou abusar das aspas) e terminou tropeçando em sem próprio gigantismo. Com a experiência de quem já chutou a porta do cinema com Alien e Blade Runner, praticamente escrevendo a gramática da ficção científica moderna, Scott entrou no jogo suave, construindo um filme em que a ciência funciona (ou ao menos acerta na ilusão de que ela seria possível, leia mais aqui), o elenco entende de cara a proposta (só ver a diferença de Jessica Chastain e do próprio Damon aqui e em Interestelar) e sua assinatura visual é usada em prol da história, e não acima dela.

Afinal, estamos falando de Ridley Scott, um dos mais experientes cineastas em atividade, um dos poucos artistas capaz de trabalhar com a estrutura de um grande estúdio e, ainda assim, imprimir sua marca. Não que sua trajetória não estivesse levemente torta há alguns anos. Prometeus, de 2012, é uma fonte de premissas incríveis, frustrada com um roteiro capenga e soluções narrativas tão estranhas que nem o visual espetacular consegue salvar. O Conselheiro do Crime (um filme que eu gosto bastante) é de tamanha estranheza que, sem saber o que fazer dele, o público simplesmente deu de ombros. Êxodo é um produto em piloto automático, trazendo tudo que faz os filmes do diretor funcionarem, mas sem nunca encontrar a liga certa para amarrar tudo numa tapeçaria coesa. Perdido em Marte quebra essa sequência estranha com louvor. Já não era sem tempo!

Trailer legendado de "Perdido em Marte"

UOL Entretenimento

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.