Sacrilégio? Bobagem: novo Ben-Hur é um drama bíblico honesto e emocionante
"O que ele tinham na cabeça?", bradaram alguns. "Como tiveram coragem?", gritaram outros. "Vai ser uma porcaria!", decretou a turba. Tuda essa bagagem terminou na conta do diretor Timur Bekmambetov (Guardiões da Noite, O Procurado), apontado para comandar uma nova versão de Ben-Hur, livro clássico de Lew Wallace publicado em 1880 que teve sua versão para cinema mais notória lançada em 1959, William Wyler na direção, Charlton Heston como protagonista. O desafio não era simples: como reapresentar essa história, ao mesmo tempo tão fantástica e tão antiquada, para a plateia do século 21? Como injetar na massa consumidora de cinema atual a releitura de um épico de tamanha proporção?
Afinal, não se engane. Apesar de a fonte ser literária, e de a história de Judah Ben-Hur ser adaptada em outras mídias há mais de um século (no teatro em 1899, no cinema em 1907 e depois em 1925), a maior inspiração aqui é mesmo o filme de Wyler. Não tinha como não ser. Campeão absoluto de bilheterias no ano de seu lançamento, Ben-Hur é a própria definição da palavra "épico". A aventura bíblica redefiniu o modo de o cinema criar espetáculos daquela escala, alterando a percepção da indústria sobre os aspectos técnicos de como conduzir um arrasa-quarteirão cinematográfico – que, em contrapartida, premiou o filme com onze Oscar, um recorde igualado (mas ainda não batido) por Titanic em 1997 e por O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei em 2003. É a realização em celulóide do "não se faz mais filmes como antigamente", um triunfo sensorial que, ao lado de E o Vento Levou, Lawrence da Arábia e um punhado de outras produções hollywoodianas parrudas, escreveu seu nome na história.
Seria impossível, portanto, Bekmambetov fugir de sua sombra. A boa notícia é que o diretor russo sequer tenta. Sua escolha foi seguir em uma outra direção, reinterpretando o livro de Wallace com a sensibilidade do cinema de hoje. Em outras palavras, Ben-Hur, repaginado para 2016, é mais enxuto e mais acelerado, tendo como vantagem uma reprodução de época mais precisa do que os couros e as sandálias da versão com Charlton Heston, e também a tecnologia para criar uma corrida de bigas, o clímax do filme, em que ninguém morreria durante as filmagens. É um filme menor, mas sua história é tão boa que nem um cineasta capenga poderia estragar. Bekmambetov definitivamente sabe o que está fazendo, com sua melhor decisão sendo esconder seu estilo pop operístico, optando por deixar a trama fluir sem grandes extravagâncias visuais.
Claro que Jack Huston não é Charlton Heston, e em suas mãos Ben-Hur fica pequeno. Não por sua falta, mas pela imensa bagagem que vem com o personagem. Ele é um judeu rico em Jerusalém que vive com a família e seu irmão adotivo, o romano Messala (Toby Kebbell). Com a influência do Império Romano é cada vez mais palpável, e Messala passando anos escalando as fileiras do exército para retornar à sua "família" com posses e dignidade, Ben-Hur vê sua vida ruir após um atentado contra a vida de Poncio Pilatos. Ele testemunha sua mãe e irmã levadas para ser crucificadas, é despejado em um navio de guerra por cinco anos como escravo e, livre após uma batalha naval (rodada inteira sob seu ponto de vista), retorna em busca de vingança. Se em 1959 sua saga estende-se por três horas e meia de filme, aqui tudo é amarrado em enxutas duas horas. Obviamente, nacos inteiros do livro de Wallace são deixados de fora, outros passam como uma brisa. Curiosamente, a conclusão da trama, alterada no filme de Wyler, é retomada nesta versão, que se torna menos uma saga de vingança e mais uma história sobre o perdão.
O que, no cinema do novo século, faz sentido. Não teria sentido refazer Ben-Hur se não fosse sob uma ótica progressista, com uma mensagem clara sobre os temas levantados. Não é ao acaso, portanto, que Jesus Cristo, um coadjuvante à distância na versão mais famosa da história, ganhe aqui peso narrativo considerável e o terceiro crédito no elenco, que foi para o brasileiro Rodrigo Santoro. Curiosamente, Cristo surge na trama ainda antes da prisão de Ben-Hur, anterior também à sua vida como pregador, após abandonar o trabalho de marceneiro. É um lado de Jesus pouco explorado e também o catalizador para o tema de perdão que amarra toda a narrativa. Em uma época em que filmes bíblicos, como os recentes Êxodo: Deuses e Reis e Ressurreição (ok, estou ignorando Os 10 Mandamentos de propósito, já que aquilo não é cinema), ainda atraem uma fatia generosa de um público cristão considerável, enfatizar o aspecto bíblico da história é, no mínimo, um bom negócio.
Com tanta perfumaria e tanta bagagem, Ben-Hur torna-se alvo fácil. Para quem quer compará-lo ao filme de 1959, para quem deseja cutucar sua vocação como filme cristão, até para quem anda entediado com os espetáculos em CGI que o cinema usa, mais por preguiça do que por conveniência, quando o assunto é criar um épico. O filme de Bekmambetov pode ser acusado de tudo isso. Dificilmente vai ficar para a história, é improvável que faça muito barulho nas bilheterias e Jack Huston, por mais simpático e decente no papel, peca pela falta de carisma para carregar um filme deste tamanho. Mas, no fim, Ben-Hur chassis 2016 se sobressai como uma aventura honesta, nunca enfadonha (a corrida de bigas, filmada com o mínimo de retoques digitais, ainda é eletrizante), genuinamente emocionante e criada com uma visão clara emoldurada por entretenimento. Às vezes, é o que basta.
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