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Apesar do vilão fraco, Doutor Estranho é mais um triunfo da Marvel

Roberto Sadovski

02/11/2016 04h11

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Doutor Estranho é outro filme sólido, divertido e empolgante de ponta a ponta saído do forno da Marvel. Pois é, mais um filme do estúdio que acerta no alvo. O estúdio aperfeiçoou sua fórmula a tal ponto que, a cada novo filme, a plateia é bombardeada com os mesmos elementos familiares e, ainda assim, ganha uma experiência totalmente nova. Porque a Marvel não faz "filmes de super-heróis". Faz aventuras de gêneros diversos que calham habitar o mesmo universo, algumas absolutamente sensacionais (Guardiões da Galáxia), outras cumprindo sua função narrativa/decorativa (Thor: O Mundo Sombrio). Mas poucas tem um protagonista tão carismático como Benedict Cumberbatch. E isso, acredite, faz toda a diferença.

Em seu cerne, Doutor Estranho é um filme de origem. Como tal, segue beats narrativos que acompanhamos desde o primeiro Homem de Ferro, lá em 2008. Assim como Tony Stark, o neurocirurgião Stephen Strange (Cumberbatch) é o melhor no que faz, tem o mundo a seus pés e não esconde uma mistura incômoda e irresistível de arrogância e prepotência. Essa é sua maior fraqueza: tire o que faz dele tão "superior", e temos um homem perdido. É o que acontece quando Strange sofre um acidente de carro que esmigalha suas mãos. Mesmo com meia dúzia de cirurgias, ele jamais poderá operar novamente. Em desespero, ele torra suas últimas economias para chegar em Catmandú, longe da ciência convencional ocidental, em busca da única pessoa capaz de curá-lo.

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Tilda Swinton releva a Benedict Cumberbatch o plano astral

Nesse ponto, Doutor Estranho joga para o alto as convenções da "fórmula Marvel" e mergulha fundo em uma verdadeira viagem de ácido, que traduz em celulóide o universo místico do personagem nos quadrinhos. A verdade é com cada novo produto em cartaz, o estúdio expande seus horizontes. Desta vez, o resultado é uma experiência visual única: é o momento em que Strange encontra a Anciã (Tilda Swinton), Mago Supremo de nossa realidade, e descobre na prática o quão estranho, vasto e bizarro o mundo pode ser. Com um toque, o mundo se torna um caleidoscópio de cores e sons, um filho bastardo de 2001 com que deixa Interestelar no chinelo. É aí que Stephen Strange começa seu trinamento, amparado por Mordo (Chiwetel Ejiofor) e Wong (Benedict Wong). E nós, do lado de cá, somos irremediavelmente fisgados.

A essa altura, está claro que o Universo Cinematográfico Marvel segue uma linha editorial sólida. Assim como nos quadrinhos, existe um conjunto de regras para manter a coesão (visual, narrativa) entre os vários filmes do estúdio, ao mesmo tempo em que seus criadores, uma vez instruídos nos guidelines, se veem livres para tocar o barco. Quando o diretor é alguém como James Gunn ou os irmãos Russo, a assinatura do artista se torna bastante visível. No caso de Scott Derrickson (O Exorcismo de Emily Rose), o trabalho não surge tão distinto, e sim o de um artesão que move as peças e as encaixa na proposta da Marvel. Em outras palavras, ele mistura elementos familiares com a engrenagem que torna cada personagem único – além do bom humor, que aqui só perde para o clima leve de Guardiões da Galáxia. Quando a receita encontra um intérprete como Cumberbatch, o resultado é genial.

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Mads Mikkelsen não vai além do vilão genérico

O que não é o bastante para colocar Doutor Estranho no mesmo patamar de Vingadores ou Capitão América: Guerra Civil. Falta à aventura aquele momento de triunfo, a cena em que o cinema grita, aplaude e se empolga junto. O motivo pode estar no calcanhar de Aquiles de boa parte dos filmes com o selo Marvel: a falta de um vilão bom o bastante para elevar a jornada do herói. Madd Mikkelsen é um ator irretocável, mas não lhe é dado muito o que fazer como Kaecilius, outro mestre das artes místicas treinado pela Anciã que, para superar uma tragédia familiar (muito mal explicada), alia-se à entidade maligna Dormammu, que planeja sequestrar a Terra e adicioná-la à sua Dimensão Sombria. Kaecilius surge como um vilão genérico, que pouco tem a acrescentar a não ser como um espelho distorcido de Strange.

Se o vilão é fraco, visualmente Doutor Estranho é uma paulada nos sentidos. Além do passeio interdimensional que apresenta o personagem a várias realidades, o filme de Derrickson triunfa ao mostrar cenas de ação inovadoras, com a gravidade sendo reescrita constantemente e as leis da física indo para o espaço. É um balé visual preciso e inventivo, traduzido em sequencias que mostram que, mesmo com o exagero digital do cinema de entretenimento do novo século, ainda encontra um respiro de criatividade. O que inclui o clímax, que parece começar no mesmo set de Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado (medo!), mas culmina com Cumberbatch numa paisagem criada em CGI, encontrando uma solução narrativa original.

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Doutor Estranho e Mordo observam a realidade dar um passeio

Ah, Benedict… Assim como Robert Downey Jr.como Tony Stark ou Ryan Reynolds como Deadpool, o ator abraça o personagem – um homem de ciência descobrindo que a magia também tem espaço em nossa realidade – sem se importar nem por um segundo com seu potencial para descambar na paródia. Difícil imaginar outro astro capaz de mencionar termos como Olho de Agamotto ou Livro de Cogliostro (senti falta das Faixas Vermelhas de Cyttorak) com tamanha seriedade. Charme, uma língua afiada e humor ferino (imagino o quanto deve ter sido ridículo executar o gestual místico do bom Doutor no set, sem nenhum efeito especial para diminuir o rosto corado), fazem com que Cumberbatch alcance a dose exata de credibilidade para "vender" a entrega de Stephen Strange de homem da ciência a candidato a Mestre das Artes Místicas. É um trabalho duro mas alguém tem de fazê-lo: Doutor Estranho mostra que, quando o assunto é levar personagens dos quadrinhos para o cinema, a Marvel ainda reina suprema.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.