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“Lugar de filme é no cinema!”, diz Christopher Nolan. Tem como discordar?

Roberto Sadovski

19/07/2017 22h35

Semana passada eu estiquei as pernas, liguei o Netflix e vi um filme belíssimo e delicado do coreano Bong Joon Ho: Okja. Ao mesmo tempo em que a produção é uma experiência poderosa, não dá para não dizer que ela é também incompleta. Afinal, assistir a um filme em casa jamais será tão impactante e espetacular quanto uma ida ao cinema. Repito: jamais. Não estou sozinho nessa. O diretor Christopher Nolan, que mudou o mapa dos filmes de super-heróis com a trilogia O Cavaleiro das Trevas, e está lançando agora o drama de guerra Dunkirk, acredita que produzir um filme sem contemplar um lançamento em tela grande "não faz o menor sentido".

Durante a maratona de lançamento de seu novo trabalho, Nolan foi bombardeado com a questão das novas plataformas e do poder do streaming, em particular o modelo Netflix. "Eles tem uma aversão bizarra em apoiar filmes no cinema", disse, sem firulas. "É uma política não muito inteligente em ter tudo transmitido e lançado simultaneamente, o que claramente é insustentável para uma apresentação em cinemas. Então eles sequer estão entrando no jogo, o que eu vejo como uma oportunidade enorme jogada fora". Vale ressaltar que a Amazon, que está entrando em campo com a mesma força do Netflix em plataformas digitais, não demonstra nenhuma preocupação em priorizar um lançamento nos cinemas antes de disponibilizar suas produções em streaming. "A Amazon está bem contente em não repetir este erro", ressalta. "Os cinemas conseguem uma janela de 90 dias, é um modelo perfeitamente sustentável." Usando este modelo, a Amazon lançou ano passado o drama Manchester à Beira Mar, que entrou firme na temporada de premiações, rendeu os Oscar de melhor ator (para Casey Affleck) e melhor roteiro original, e faturou 50 milhões de dólares só nos Estados Unidos. Em 2015, o Netflix comprou os direitos do excepcional Beasts of no Nation, lançado simultaneamente nos cinemas e em sua plataforma. O filme passou batido pelos prêmios da Academia e rendeu pálidos 90 mil dólares.

Seria incrívei assistir a Okja no cinema…

A briga dos cinemas com outros modelos de o público assistir a filmes não é novidade. Quando as fitas em VHS tomaram a indústria nos anos 80, vários produtores enxergaram uma oportunidade de expandir sua distribuição com filmes mais baratos, voltados unicamente para o mercado doméstico. "O debate não é novo", continua Nolan. "Nos anos 90, muitos produtores despejavam filmes em home video, era um pesadelo." Sua posição parece ir contra a tendência do mercado em encarar filmes cada vez menos como fragmentos artísticos e mais como produtos numa linha de montagem. Em março passado, durante a CinemaCon, convenção em que produtores apresentam suas "armas" a exibidores, Nolan bateu de frente com seus próprios aliados. Quando a presidente de marketing e distribuição mundial da Warner, Sue Kroll, ressaltou que "consumidores estão nos dizendo que eles querem mais escolhas de como e onde assistir a produção audio visual", o cineasta foi incisivo: "A única plataforma que me interessa é a exibição em cinemas".

A verdade é que eu não entendo como qualquer um que goste de filmes possa preferir qualquer plataforma que não seja o cinema. Alternativas, como DVDs, blu rays e o próprio Netflix, não passam disso: alternativas. A experiência cinematográfica ainda é única, é coletiva, é um momento dividido em uma sala escura, em que a imersão na narrativa à nossa frente é total. O debate do streaming é só mais uma peça do tabuleiro do mundo do entretenimento, e as notícias de uma mudança de percepção com os consumidores é cíclica. Quando os GTAs e os Call of Duties da vida rendiam centenas de milhões de dólares a produtores de videogames, o papo era que a interação e os jogos quase foto realistas tomariam o lugar do cinema (o que não aconteceu). Há alguns anos, a TV voltou a ser o espaço de artistas experimentarem com narrativas mais longas e mais ousadas, e o papo foi que grandes criadores apostariam mais na telinha do que na telona (o que também não aconteceu). Realidade virtual? É a bola da vez mas, apostando um doce, não vai tomar o lugar do cinema.

Following foi o começo de Christopher Nolan com cinema de guerrilha

O que é evidente é uma mudança de hábitos, talvez alimentada pela velocidade do mundo moderno e pela praticidade das novas tecnologias. Mas cinema não é sobre isso, não é sobre assistir a um filme no celular enquanto pega o metrô para casa. "Trabalhar com grandes estúdios é uma arena de alto risco, porque é onde arte e comércio de fato se encontram", explica Nolan. "Se você conseguir uma maneira de trabalhar com o sistema, é uma máquina poderosa, com muitos recursos e mecanismos de distribuição excelentes." Vale lembrar que Nolan começou sua carreira com o thriller ultra independente Following, que foi rodado em esquema de guerrilha, com os amigos e em finais de semana. Amnésia foi seu filme seguinte, ainda independente, o que levou a uma parceria com a Warner que, de Insônia a Dunkirk, foi até agora um sucesso artístico e comercial.

Claro que não existe uma única regra. Para uma parte considerável de cineastas que ainda lutam para mostrar seu trabalho ao público, um modelo como o Netflix é a solução. Sem falar que o serviço de streaming já mudou o hábito de quem assiste a filmes e séries de maneira irreversível. House of Cards inaugurou o binge watching, a maratona moderna de séries, com louvor. Programas como Arrested Development e Samurai Jack encontraram um novo lar no Netflix – o mesmo vale para "produtos" tão diversos como o novo Twin Peaks e BoJack Horseman. A Marvel abriu espaço para personagens que dificilmente teriam tanto cuidado no cinema, e séries como Demolidor, Jessica Jones e Luke Cage tiveram a chance de jogar luz em territórios mais sombrios e violentos do estúdio. Adam Sandler encontrou ali seu novo nicho para comédias ruins. Netflix é uma ferramenta genial. Mas não substitui o cinema.

Dunkirk, rodado em Imax para ser visto em tela gigante

Observar a busca pelo equilíbrio entre as plataformas será um jogo interessante. Gigantes como James Cameron (que prepara mais uma fornada de Avatar) e Steven Spielberg (agora finalizando seu Jogador Nº 1) continuarão usando o cinema como palco para experiências coletivas e imersivas. Já Martin Scorsese prepara The Irishman, épico de gángsters de 100 milhões de dólares, com Robert DeNiro, Al Pacino, Harvey Keitel e Joe Pesci, para lançamento pelo Netflix no fim do ano que vem. Michael Bay disse recentemente que um dos motivos para a queda nas bilheterias dos grandes lançamentos do verão americano – o que inclui seu Transformers: O Último Cavaleiro – é justamente a competição com novas plataformas, que falam mais a linguagem de um público jovem mais interessado em consumir do que em absorver. "Ninguém vai deixar de ir ao cinema", disse. "Mas é triste." Nolan vai além. "Acho que o investimento que o Netflix está colocando em cineastas interessantes e em projetos interessantes seria mais admirável se não estivesse sendo usado como alavanca para fechar cinemas", conclui. "Não faz o menor sentido." Dunkirk será lançado no Brasil em 27 de julho. Nos cinemas, claro.

 

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.