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A nova versão para It, de Stephen King, é um filme de terror com coração

Roberto Sadovski

07/09/2017 05h41

It: A Coisa, é sobre medo. Para ser mais preciso, sobre como o medo nos ajuda a conduzir nossa vida. É um equilíbrio delicado entre enfrentar nossos temores para crescermos como seres humanos, ou evitá-los a todo custo para, evocando nossos instintos primais, nos mantermos vivos. Stephen King extrapolou e materializou este conceito do medo quando escreveu It em 1986. O autor foi além, criando uma saga que atravessa décadas (e mais de mil páginas) para mostrar como um grupo de crianças numa dessas cidadezinhas americanas congeladas no tempo teve de enfrentar a verdadeira encarnação do medo, uma criatura transmorfa que usa a figura de um palhaço como casca preferida, para não morrer. Duas vezes! Em meio à narrativa, King achou espaço para colocar abuso infantil, sexo proibidíssimo, realidades paralelas e criaturas interdimensionais, com os frágeis humanos jogados no meio, ora como gado, ora como salvadores.

A ótima notícia é que essa versão para It, conduzida pelo argentino Andy Muschietti (de Mama), edita sem perdão alguns dos elementos mais psicodélicos do livro, livra-se de metade da trama (quando os protagonistas já são adultos), enxuga a narrativa sem perder sua intensidade e, o principal, sem abrir mão de sua densidade emocional. O resultado é um filme de terror com coração – e é um arraso! Muschietti, que assumiu o projeto após a saída conturbada de Cary Fukunaga (True Detective), mostra habilidade para compor o equilíbrio delicado entre atmosfera e adrenalina que formam parte do esqueleto dos filmes do gênero. Seu maior acerto é o elenco infantil excelente, que se tornam avatar da plateia em uma jornada para enfrentar seus maiores medos. Não que It seja um filme existencial sobre os temores em nosso subconsciente: quando a coisa (ou "A Coisa") se materializa, literalmente, não há muito espaço para sutileza.

o Clube dos Otários vendo o que não deve

Qualquer noção de sutileza já é varrida na sequência inicial, uma escalada de tensão construída com brilhantismo. É quando acompanhamos os irmãos Billy (Jaeden Lieberher), em casa tomado por uma gripe, e o caçula Georgie (Jackson Robert Scott), que sai na chuva para testar o barco de papel presenteado por seu irmão. A corrente na sarjeta leva o brinquedo até um bueiro, e quando Georgie se abaixa para resgatá-lo, é recebi pelo olhar faiscante do palhaço Pennywise. O diálogo é nervoso, o garoto ainda não entende o que faz um palhaço dentro do esgoto, e a gente mal tem tempo para elaborar quando o encontro, assim como no livro, é encerrado com gritos de pavor, chuva interminável, sangue misturado com chuva e um desmembramento. Nada funciona melhor para mostrar para a plateia que você não está para brincadeiras do que matar uma criança num filme. E isso é só o começo.

A trama pega fôlego quase um ano depois, quando descobrimos que Georgie é mais um entre uma lista de crianças desaparecidas na pequena Derry, no estado do Maine (não por acaso, onde King nasceu e ainda mora). Billy e seus amigos, Richie (Finn Wolfhard, de Stranger Things), Stanley (Wyatt Oleff) e Eddie (Jack Dylan Grazer) preparam-se para as férias de verão. A diversão logo se mostra sombria quando eles passam a ter visões do mesmo palhaço, e o grupo aumenta com Ben (Jeremy Ray Taylor), o garoto novo na cidade, e Beverly (a excepcional Sophia Lillis que, acredite, terá uma carreira longa nessa indústria), uma menina abusada pelo pai que se torna o centro afetivo e emocional do grupo. Quando fica claro que a Coisa é real e que não vai parar até que eles também estejam mortos, o grupo, apelidado Clube dos Otários, passa a investigar a história estranha da cidade (pontuada por eventos catastróficos cíclicos e pela morte de centenas de crianças), enfrentando a apatia dos adultos, um grupo de bullies e a ameaça mortal representada por Pennywise.

O argentino Andy Muschietti dirige sua Coisa

E essa ameaça não decepciona. Na primeira versão fora do papel de It, uma série para a TV americana de 1990 (lançada por aqui em uma edição interminável de 3 horas de duração), coube a Tim Curry dar forma à figura icônica de Pennywise. Para o filme, Muschietti foi certeiro, dando a Bill Skarsgård (filho de Stellan, irmão de Alexander) a tarefa de transformar o "palhaço dançarino" em um personagem ao mesmo tempo aterrorizante e sedutor: seu design é muito mais sombrio que a encarnação de Curry, com o sorriso perpétuo e os olhos desencontrados lhe conferindo uma aura sobrenatural irresistível. Ele é, afinal, a materialização do medo, assumindo para cada um do Clube dos Otários a forma que mais lhes apavora – seja a pintura de uma mulher deformada, um leproso de corpo despedaçado ou um chafariz de sangue. Ou um irmão caçula que repete, com determinação maníaca, que todos "vão flutuar também".

A decisão em ambientar It nos anos 80 (ao contrário dos anos 50 do livro) é tanto prática quanto nostálgica. Vivemos uma era alimentada pela lembrança de "uma época melhor", e a iconografia pop da Derry de 1989 é perfeita para conquistar a plateia que, hoje, consegue se enxergar naquelas crianças – o cinema da cidade exibe Batman e Máquina Mortífera 2, as roupas e as músicas evocam identificação imediata. Do ponto de vista comercial, não atrapalha o público em potencial, em especial o mais jovem, que sequer era um embrião na época em que se passa o filme, ter sido exposto recentemente ao sucesso Stranger Things na TV, que divide com It a afinidade por monstros de dimensões paralelas e adultos que não fazem a menor ideia sobre como lidar com situações-limite.

Ei, vem aqui pra eu te mostrar uma parada rapidão!

Claro que o filme de Muschietti não foge de algumas convenções do terror moderno, com sustos rápidos entrecortados por tensão crescente – e uma certa decepção em seu clímax. Mas o diretor argentino mostra que entende o principal motor para uma narrativa bem sucedida: a conexão emocional de seus personagens. Claro, o elenco de It é submetido a uma pressão constante e a um medo tão pulsante quanto levemente irreal. Mas nos importamos com eles porque entendemos seus medos, e essa identificação faz com que as sensações que eles experimentam em cena nos sigam bem depois de sairmos do cinema, quando a escuridão e o silêncio parecem conspirar contra nós. Não é a "obra-prima do medo" que seu primo pobre e longínquo da TV estampava em sua capa. Mas é um filme de terror conectado com a plateia moderna, com o mercado (o filme certamente será uma injeção de dólares em um ano marcado até então por imensos fracassos nas bilheterias) e com a função primordial do gênero: causar arrepios sinceros e risadas nervosas. Pennywise garante!

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.