O que você faria se seu filme favorito fosse produzido por um estuprador?
É possível separar o artista de sua arte? Essa pergunta anda buzinando meus ouvidos desde que Harvey Weinstein foi relevado como assediador e estuprador por dúzias de mulheres que, após quase três décadas de silêncio, jogaram o holofote em cima dos hábitos hediondos do produtor. Nas últimas semanas acompanhamos sua queda irrefreável, denúncia empilhada sobre denúncia, com parceiros e amigos deixando bem público seu repúdio com o tratamento asqueroso que Harvey reservava a mulheres próximas – de secretárias a estrelas de primeira grandeza. Sua carreira está enterrada, com o risco de ele terminar na prisão ou recheando a própria empada com uma azeitona. O recado ficou claro, agora é questão de tempo para que outras vítimas apontem o dedo para outros predadores. Fim de papo. Certo?
Daí eu revi Pulp Fiction. E o caldo entornou.
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Como produtor, Harvey Weinstein não tinha a melhor das reputações. Era conhecido por, muitas vezes, retirar um filme das mãos de seus realizadores e retalhar o produto final segundo sua visão de mercado. Mutação, primeiro filme de Guillermo Del Toro para o mercado americano, só não ficou 100 por cento desfigurado graças à interferência de sua estrela, Mira Sorvino, que à época tinha mais influência e um Oscar embaixo do braço. Olhos Abertos, primeiro longa de M. Night Shyamalan, não teve tanta sorte. O drama Studio 54, concebido como uma viagem sombria pelo underground nova-iorquino dos anos 70 movido a ambição e drogas, foi reconfigurado como um candidato a blockbuster quando parte de seu elenco protagonizou filmes de sucesso durante sua produção – o resultado bipolar fez com que o filme fosse rejeitado por todos os públicos.
Mas Pulp Fiction, obra que basicamente inaugurou o cinema independente americano como conhecemos hoje, existe em parte pela visão e tenacidade de Weinstein em enxergar o gênio criativo e as possibilidades comerciais no trabalho do diretor Quentin Tarantino. Foi Harvey, primeiro pela Miramax, depois pela The Weinstein Company, quem viabilizou sua carreira, de Jackie Brown a Kill Bill a Os Oito Odiados ao novo projeto sobre a Família Manson. Tarantino demorou a se pronunciar sobre as revelações acerca de seu amigo de quase três décadas, finalmente dizendo que deveria ter feito mais porque a natureza de Weinstein não lhe era desconhecida. Kevin Smith, que também deve sua carreira ao produtor, que lhe abriu espaço para fazer O Balconista e manteve uma relação de amizade até se desentenderem à época do lançamento de Pagando Bem Que Mal Tem, foi além: envergonhado, declarou que cada centavo que ganhar de filmes feitos em parceria com Weinstein irá, a partir de agora, para uma organização em defesa do direito das mulheres.
A cada dia, uma nova revelação. Mais e mais atrizes e colaboradoras que foram vítimas do comportamento de Harvey Weinstein contarão sua história. Mais e mais seus antigos parceiros divulgarão notas de repúdio e mea culpas sobre sua inação. Ainda assim, os filmes permanecem. A contribuição do produtor é gigantesca, e é estranho observar seus filmes agora sem imaginar o que ocorria nos bastidores. Ele ajudou a lançar Gwyneth Paltrow como estrela em Emma, e a colocou na posição de ganhar um Oscar por Shakespeare Apaixonado – mas ela já foi à frente e revelou o assédio por parte de Harvey. Ben Affleck e Matt Damon só possuem uma carreira porque ele viabilizou Gênio Indomável – Affleck e Damon estenderam a parceria por vários outros filmes e também com a série de TV Project Greenlight. A essa altura é de revirar o estômago imaginar o que ocorria atrás das câmeras da série Project Runway, ambientada no mundo da moda.
Em sua vasta carreira, Harvey Weinstein se tornou o sujeito que mais recebeu agradecimentos por parte de vencedores do Oscar. Ele ajudou a lançar a carreira de David O. Russell com Procurando Encrenca, e lhe estendeu a mão outra vez quando o diretor precisava de um respiro: o resultado foi o premiado O Lado Bom da Vida. Por falar em prêmios, as empresas de Harvey somam 81 estatuetas douradas, começando pelas vitórias de Daniel Day-Lewis e Brenda Fricker em Meu Pé Esquerdo, em 1990, até a trilha sonora de Os Oito Odiados, assinada por Ennio Morricone. O Paciente Inglês, Shakespeare Apaixonado, Chicago, O Discurso do Rei e O Artista estão entre seus filmes mais premiados com o Oscar. Claro, isso agora faz parte do passado, já que Harvey foi expulso da Academia e a The Weinstein Company é, no mínimo, tóxica em qualquer premiação a partir de agora.
Mas tudo isso reflete o homem, e ele é uma criatura repulsiva, colhendo agora frutos de uma vida secreta marcada pelo abuso de seu poder. Os filmes que ele ajudou a criar, entretanto, não devem ser renegados por sua conduta. Woody Allen (que se apressou em frear a "perseguição" contra Weinstein) tem sua cota de acusações, e ainda faz uma pérola ocasional. Roman Polanski, que será preso por pedofilia no segundo em que colocar os pés em solo americano, foi premiado (à distância) com o Oscar de melhor diretor por O Pianista – e encara, agora, mais acusações de abuso sexual cometidos nos anos 70. O roteirista e diretor James Toback enfrenta a acusação de assédio por 38 mulheres. Eu duvido que as revelações contra homens que se escondiam por trás do poder dentro da indústria cinematográfica parem por aí. É um movimento irrefreável e necessário, para causar a mudança em um ambiente tóxico que, em pleno século 21, precisa deixar práticas tão nefastas para trás. Saber que essas pessoas criaram obras de arte é um sentimento agridoce. Apreciar seu cinema se torna difícil, embora a arte por vezes sobrepuje o artista. Mas nenhum filme, em nenhuma circunstância, vale mais que o sofrimento silencioso de um ser humano.
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