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Trama Fantasma: último filme de Daniel Day-Lewis é a despedida perfeita

Roberto Sadovski

22/02/2018 16h08

Daniel Day-Lewis não poderia ter escolhido filme mais perfeito para se despedir do ofício que o consagrou. Trama Fantasma é um estudo delicado sobre o preço de ser (e conviver com) um gênio, e poderia ser um grande espelho tanto para o ator quanto para seu diretor, o igualmente genial Paul Thomas Anderson. Embora não alcance o impacto der sua colaboração anterior, a gigantesca obra-prima Sangue Negro (possivelmente o melhor trabalho de cada um deles), o novo filme consegue ser igualmente intenso, mesmo substituindo a violência física que explode pelas mãos do magnata do petróleo Daniel Plainview pela pressão psicológica infringida pelo estilista Reynolds Woodcock. Em ambos os casos, o comando de cena é de Day-Lewis.

Ou quase! Em Trama Fantasma, o ator foi extremamente generoso ao dividir o foco dramático com um par de atrizes tão distintas quanto complementares. A primeira é Vicky Krieps, que interpreta Alma, jovem seduzida pela personalidade misteriosa de Woodcock e arremessada numa vida de regras rígidas e de paixão arrebatadora. Mas a dona do personagem mais poderoso no filme de Anderson é Lesley Manville. Ela dá vida a Cyril, irmã de Reynolds, guardiã da rotina em sua existência, administradora de seu ateliê com olhar afiado em clientes, modelos e artesãs, o centro da ordem em uma vida que precisa do caos para despertar sua genialidade. Cada palavra, cada gesto, cada olhar de Manville é um desafio artístico que Day-Lewis abraça com afinco. Sua indicação ao Oscar de melhor atriz coadjuvante é prova que, às vezes, tudo está bem no universo.

Lesley Manville (sentada, ao centro) observa o desfile de Vicky Krieps

As duas, entretanto, são exatamente as coadjuvantes para Daniel Day-Lewis deslumbrar com mais uma performance que é parte técnica, parte instinto, total entrega. É um papel difícil, já que seu conflito é interno, uma construção dramática em que cada camada é desvendada lentamente, com diálogos, gestos e traquejos que imprimem verdade ao papel. Paul Thomas Anderson conduz a história longe de uma narrativa tradicional, como se cada cena, embora meticulosamente planejada, só ganhasse forma definitiva no atrito entre seu elenco. O roteiro surge como um caminho sugerido, mas não definitivo, resultando em um filme pouco tradicional, ainda que seja mais orgânico em sua gestação. Sem falar que cada elemento trabalha para enriquecer a performance de seu protagonista e a precisão de seu diretor, da trilha poderosa de Jonny Greenwood (que a essa altura já pode aposentar seu outro emprego, como guitarrista do Radiohead) ao figurino de Mark Bridges.

Os vestidos são, por sinal, a peça mais curiosa de Trama Fantasma. As criações de Bridges, que na ficção são fruto da mente de Woodcock, são delicados, mas não deslumbrantes; vestem princesas e milionárias, mas não pertencem à uma passarela como adornos de celebridades num tapete vermelho. São arte, resultado do trabalho de um homem com repulsa à imperfeição que encara seu ofício com solenidade quase religiosa. Ele tem personalidade, que é exatamente o propósito do personagem habilitado por Day-Lewis. E o filme não é sobre o mundo da moda, e sim sobre um homem pressionado pelo peso da demanda da Londres pós-Segunda Guerra, em que sua profissão parece ser diminuída pela busca pelo "chique" – palavra que ele abomina – e pela obrigação de seguir uma estética insípida.

Paul Thomas Anderson dirige Daniel Day-Lewis: olha essas feras, bicho!

Esse conflito entra em ebulição quando ele conhece Alma, garçonete num vilarejo nas cercanias da capital inglesa, por quem ele se encanta e logo leva para casa. Alma se torna musa, logo amante e esposa, mas ela representa o completo oposto da perfeição almejada por Woodcock. Esse conflito conduz a trama em que a violência nunca é física, mas surge em diálogos carregados de tensão, entregues por um elenco completamente absorto na proposta de seu diretor. Em uma cena particularmente devastadora, Alma dispensa a todos no estúdio planejando um jantar a dois com Reynolds. A quebra da rotina alimenta um rancor latente que explode numa discussão devastadora. Difícil pensar em outro ator além de Day-Lewis capaz de alinhar palavras com tamanha fúria, mesmo que ela não se manifeste claramente em suas expressões. É um trabalho tão complexo, tão invisível e tão sensacional que só mesmo Gary Oldman e seu Winston Churchill em O Destino de Uma Nação para tirar a estatueta dourada de Daniel.

É curioso que Trama Fantasma signifique o fim da carreira de Daniel Day-Lewis, especialmente pelos paralelos que seu personagem traça com sua própria personalidade. Assim como Woodcock, o astro de Meu Pé EsquerdoGangues de Nova York é um perfeccionista, com sua genialidade surgindo nas ondulações de uma pedra arremessada em um lago: é o caos que perturba a paz, e é nesse caos que o ator se transfere ao assumir um novo personagem. A entrega é completa, seja vivendo sozinho na floresta para sentir seu personagem de O Último dos Moicanos, seja construindo uma casa de madeira ao se preparar para As Bruxas de Salem. Em um mundo que parece se esforçar para seguir uma estética "vencedora", Daniel Day-Lewis se sobressai quebrando essas regras – mesmo que, paradoxalmente, ele siga o regime mais óbvio para exercer seu ofício: estudo, preparação, disciplina, instinto. Qualidades que, em suas mãos, presentearam o público com um talento como poucos, que deixará uma lacuna.

Day-Lewis, por sinal, dedicou-se a aprender a costurar como preparação para Trama Fantasma. Por um ano ele estudou com Marc Happel, figurinista da Companhia de Balé de Nova York, para aprender como funcionam as habilidades e a mente de um costureiro dos anos 50. Ao fim desse período, ele conseguiu, sozinho, criar uma réplica de um vestido leve de época para sua mulher, a diretora Rebecca Miller. Em uma entrevista à revista W, o ator confirmou que sua cara-metade já usou sua criação. "Ficou muito bonito", comentou. Não poderia ser diferente.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.