Topo

Como "uma vida inteira de nerdice" criou o novo terror nacional em Motorrad

Roberto Sadovski

02/03/2018 04h32

Motorrad, filme de terror e ficção científica estranhíssimo do brasileiro Vicente Amorim, quase saiu do papel como uma aventura bem mais, digamos, tradicional. "A ideia original trazia uma turma fazendo trilha de moto e outros motoqueiros que queriam roubar o grupo", lembra o produtor L.G. Tubaldini. "Mas daí o Danilo Beyruth entrou no projeto e tudo ficou mais esquisito." E "esquisito" se tornou palavra-chave no projeto, completado pelo roteirista L.G. Bayão. Ladrões viraram entidades inumanas – aliens, demônios, você decide! A trilha tornou-se uma espécie de universo paralelo em que os protagonistas se tornam alvo de caçadores implacáveis. E o que era uma aventura sobre rodas no interior do Brasil terminou como um produto que pode dar um novo passo ao cinema brasileiro de gênero.

"A bagagem pra criar Motorrad é uma vida inteira de nerdice", explica Amorim, responsável por dramas como O Caminho das Nuvens, Corações Sujos e…. Irmã Dulce! "Pra começar, John Carpenter, que é a razão de eu querer há vinte anos começar a fazer cinema – em especial O Enigma de Outro Mundo. Na criação do monstro em Alien, o Oitavo Passageiro, na relação dos personagens com a criatura, sua insidiosidade. Aí você dá mais um passo, John McTiernan, já que nosso filme traz uma estrutura que se espelha em Predador. Os nossos motoqueiros espectrais são o predador, já que basicamente são um organismo só." Peraí, como? O cineasta respira e explica: "Eles são como dedos de uma mão… no caso, quatro dedos, como a mão do Mickey". Como eu disse: esquisito.

Os motoqueiros nada fantasmas de Motorrad espreitam sua presa

Volto no tempo e lembro de meu primeiro papo com Vicente, uns quinze anos atrás, quando ele se preparava para lançar O Caminho dos Sonhos, em que um Wagner Moura moleque atravessa o país com a família em bicicletas em busca de "um emprego que pague mil reais". Era um road movie disfarçado de drama, com as influências pop do diretor sempre ameaçando mostrar os dentes. Já naquela época Amorim revelava sua formação eclética, que ia de sessões de nouvelle vague em cineclubes cariocas a sessões de blockbusters com a turma – Predador incluso, se bem me lembro. Mas de Wagner Moura de bicicleta a assassinos espectrais motorizados sobre duas rodas, o caminho foi longo – e, talvez, irreversível. "A equipe se preparou com uma lista que eu chamo de 'modo de usar', que são as referências e influências que formam a visão que eu tinha para Motorrad", explica. "O pessoal então passou um tempo dormindo com "Enter Sandman" nos ouvidos. Alto!"

Na trajetória do cinema brasileiro, que oscila (com as exceções, claro) entre a comédia rasgada e o…. errr…. "filme-cabeça", Motorrad surge como uma anomalia, um filme de terror que foge de nossa tradição (Zé do Caixão, cinema trash) e aponta um caminho diferente. Foi justamente o que o argentino Martín Hodara, diretor do ótimo Neve Negra, contou num papo quando veio ao Brasil: o pulo do gato do cinema dos hermanos foi o investimento em filmes de gênero. "A galera tem medo de abraçar um cinema mais pop", manda Vicente, no alvo. "Porque é muito mais difícil fazer cinema pop do que esse cinema dito 'de autor'." Ele explica que esse estilo de filme, seja terror, seja ficção científica, precisa de um domínio da técnica muito grande e referências muito claras. "Não estou desmerecendo o cinema feito em um apartamento, com dois atores", continua. "Mas aí a técnica é pouco importante, e quando você faz gênero a técnica é o mais importante. E é nesse ponto que Motorrad se aproxima da história em quadrinhos, que é pura técnica."

Vicente Amorim tortura um pouco mais seu elenco no meio do nada

E foi nesse ponto que o roteirista e desenhista Danilo Beyruth entrou no time. Autor de um dos álbuns de quadrinhos mais bacanas dos últimos anos, a aventura no cangaço Bando de Dois, e responsável pela revitalização do personagem clássico de Maurício de Sousa, o Astronauta (em três graphic novels, MagnetarSingularidade e Assimetria), o artista foi responsável por traçar um conceito para o universo criado em Motorrad. "A criação do roteiro foi um esforço coletivo que durou cerca de dois anos", continua Amorim. "Eram ideias que saiam do Bayão e do Tuba, voltavam à prancheta do Danilo, rebatiam em mim e, aos poucos, começavam a tomar forma fora do papel." Aos poucos todos os conceitos se materializaram nessa fenda da realidade em que um grupo de amigos se aventura ao seguir uma motoqueira misteriosa e se tornam presa dos quatro assassinos que dominam o lugar. "A ideia é que eles são tentáculos dessa área, como se tudo fosse um único organismo, com o objetivo de transformar os forasteiros em criaturas como eles", explica. "E todo o trabalho de produção, as roupas, o desenho das motos, a cor e a luz que intensificam a sensação de aridez, tudo veio dos conceitos do Danilo rebatendo com nossas ideias."

A primeira exibição de Motorrad no Brasil foi no Festival do Rio realizado no fim do ano passado – que viu em suas telas outros filmes brasileiros que flertam com o cinema de gênero, como O Animal Cordial e As Boas Maneiras. "Acho que estamos vendo o começo de uma mudança", acredita o diretor, que enxerga uma abertura nesse fluxo de produções que abraçam conceitos mais pop. "Motorrad tem sido bem recebido em festivais pelo mundo, e quando um único filme faz sucesso, abre os olhos de outros produtores e realizadores, que já tinham vontade de seguir esse caminho, para a possibilidade isso não ser uma loucura." Volume gera procura, e o público assim passa a procurar produções que, se não são similares, ao menos se comunicam conceitualmente. "Esse tipo de cinema não precisa ser uma curiosidade, ou para um público muito hermético, muito hardcore. Tem de abrir pra galera que vai ver Annabelle, tem de ser uma experiência coletiva e sensorial no cinema", arremata, já concluindo. "E por isso que buscamos inspiração e aproximação com as histórias em quadrinhos, que são hoje o melhor exemplo de como criar um universo que o público tem vontade de descobrir."

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.