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Doutrinador: sangue, tiros e a anatomia de uma cena de ação made in Brasil

Roberto Sadovski

21/03/2018 03h22

Foto: Aline Arruda

Crédito fotos: Aline Arruda

"Baba e cai." Ok, talvez não sejam exatamente as palavras que alguém espera ouvir no set de um filme de ação. Cinema, porém, é a arte da ilusão (ou de criar uma ilusão que passe por realidade), e nem sempre esse processo é, na falta de uma palavra melhor, sexy. Criar um filme requer preparo e paciência. Quando o papo estaciona no cinema de gênero, ainda uma raridade por essas bandas, "paciência" se torna a chave de toda a execução. Na prática, quando seu diretor diz "baba e cai", acredite, você vai gemer um pouco, segurar as partes do seu corpo que parecem penduradas por um buraco no estômago. Vai babar (sangue). E vai cair, mortinho. Corta. A equipe prepara a cena seguinte. E o defunto lá, sem perder sua marcação, estirado no chão.

Já é alta madrugada em uma mansão no Morumbi, em São Paulo, e eu já estou há algumas horas no set de O Doutrinador, adaptação da história em quadrinhos de Luciano Cunha e Gabriel Wainer. Olhando o monitor, os diretores Gustavo Bonafé e Fabio Mendonça observam a ação e discutem os próximos passos. Criar uma cena de ação é um trabalho exaustivo e meticuloso, que pode ser traduzido como um jogo de espera de ângulos diferentes, variações mínimas e muito material para ser montado, assim que as filmagens terminarem, em um quebra-cabeças que constroi um pedaço de entretenimento pouco visto e/ou experimentado no Brasil. Filmes de ação por aqui, afinal, são raridade. Os dois Tropa de Elite são puxados pela memória. O recente Motorrad flertou com a adrenalina, embora repousasse em outro gênero (no caso, terror). O Doutrinador, então, surge como um passo importante e necessário para garantir uma pluralidade necessária para a expansão do cinema nacional.

Foto: Aline Arruda

Os diretores Fabio Mendonça e Gustavo Bonafé monitoram a ação

Logo eu me despeço de Mendonça, que deixa a mansão e o comando das filmagens da noite nas mãos de Bonafé. Embora concebido como um único filme (projeto que passou pelas mãos de Afonso Poyart e Johnny Araújo), O Doutrinador está sendo concebido como um híbrido: vai ser exibido nos cinemas e também no canal a cabo Space como uma minissérie. Assim, a direção do longa tem a mão na massa de Bonafé, com Mendonça co-dirigindo o filme e assumindo capítulos para a TV. Na prática, porém, o projeto surge como uma história com cerca de sete (!) horas, editada para o cinema e expandida para a telinha. Se faz todo o sentido do ponto de vista comercial, é um pesadelo logístico para a equipe dando forma à coisa. "O planejamento é absurdo!", explica Mendonça. "Alguns cortes no cinema passam para cenas diferentes na versão para a TV, e precisamos estar atentos à tudo."

Mas essa é uma discussão que quero continuar com a dupla de diretores quando o trabalho estiver na lata. Agora o trabalho é fazer algo até então inédito no cinema nacional: criar um anti-herói plausível, moderno e implacável. A cena que eu acompanho nesta madrugada no Morumbi começou a ser rodada já alguns dias antes. A ação acompanha nosso protagonista, o misterioso Miguel (Kiko Pissolato), invadindo o local, dando cabo de uma dúzia de seguranças antes de dispensar seu estilo sangrento e nada discreto de justiça. Sua jornada espelha a de outros heróis dos quadrinhos e do cinema. Agente federal bem treinado, Miguel culpa a corrupção por uma tragédia pessoal e coloca um alvo na cabeça dos políticos e empresários que tomaram o poder no Brasil. Antes que alguém pense em politizar O Doutrinador, porém, vale apontar que é a história uma fábula, uma fantasia em uma cidade fictícia que, claro, pode refletir alguns fatos do lado de cá da câmera. Mas é a "realidade" filtrada por uma lente, um hiper-realismo mirando mais o entretenimento do que a reflexão.

O Judoka levou um personagem de gibi brasileiro ao cinema em 1973

Diversão que, pode acreditar, dá trabalho para sair do papel. Um dos pedaços da sequencia de ação sendo criada nesta noite é um tiro de fuzil que atravessa uma grossa porta de madeira e termina no….. bem…. no "baba e cai". "Melhor cobrir os ouvidos que a explosão é alta", avisa Bonafé, ele mesmo assumindo posição segura. A equipe prepara a porta e o fotógrafo Rodrigo Carvalho confere o foco através do orifício que a "bala" vai fazer. Todos em posição e BUM!, uma carga explosiva faz um buraco na porta. "Faltou arrebentar um fragmento", observa o diretor. Ele é informado que reiniciar toda a cena, repondo a madeira na porta e preparando uma nova carga, vai tomar cerca de meia hora. "A gente arruma na pós", decide. Corta. A equipe prepara a cena seguinte. E o defunto lá, sem perder sua marcação, continua estirado no chão.

As histórias em quadrinhos no Brasil já aprenderam, há décadas, que a diversidade é o melhor negócio. De álbuns independentes a quadrinhos mainstream, artistas brasileiros contam histórias dos mais diversos gêneros, da ação politizada a aventuras infantis, do terror folclórico à ficção científica pós-apocalíptica. O cinema da terrinha demorou para seguir a tendência do cinemão e olhar mais atentamente para essa fonte quase inesgotável de ideias. Mérito de Luciano Cunha e Gabriel Wainer, que sabiam possuir um conceito bacana, inteligente e comercial, e foram em frente com a ideia de transpor a barreira do papel para o cinema. Cunha, em especial, dedicou-se com afinco, equilibrando um emprego de ilustrador com o ofício de quadrinista, abraçando o conceito de "exército de um homem só" para fazer de O Doutrinador realidade. Adaptações de gibi no Brasil não são algo inédito, mas são raridade. O Judoka transformou, quarenta e cinco anos atrás, o ator Pedro Aguinaga no personagem que a Ebal publicou entre 1969 e 1973. Menino Maluquinho não era exatamente um gibi, mas a criação de Ziraldo ganhou dois filmes em 1995 e 1998. Este ano Turma da Mônica: Laços, com direção de Daniel Rezende, finalmente vai levar os personagens de Maurício de Sousa para o cinema. Existe, portanto, uma responsabilidade extra atrelada ao projeto.

Foto: Aline Arruda

Bonafé orienta Kiko Pissolato, que assume o papel do Doutrinador

Kiko Pissolato não só entende essa responsabilidade como a abraça. Sentado na cadeira de maquiagem, com cortes e hematomas sendo adicionados a seu rosto, o ator de 37 anos conta que caçou o projeto no momento em que soube de sua existência. "A gente sempre se imagina como um herói", empolga-se. "Existir um personagem como o Doutrinador é dificílimo no Brasil, então dei o melhor de mim." Em outras palavras, ele encarou uma rotina de treinamento que o fez dispensar dublês sempre que possível. "Nada irresponsável!", apressa-se em corrigir. "Eu acho bacana poder emprestar o máximo de credibilidade possível, mas em cenas mais complicadas trabalhei com os dublês. Não posso arriscar parar uma produção por conta de um capricho." Quando começamos a falar sobre cinema de ação, Kiko se mostra ainda mais entusiasmado, confessando sua admiração por grandes heróis de ação do cinema, de Stallone a Schwarzenegger, de Norris a Van Damme. "Como ator e como artista, a gente aprende as nuances da profissão, os grandes intérpretes", continua. "Mas não é todo mundo que vê esse estilo com bons olhos no meio artístico." Meu caro, eles não sabem o que estão perdendo!

Esse tipo de preocupação, claro, logo se perde na brisa quando Pissolato, já com o uniforme completo de seu personagem, caminha numa sala para encarar seu nêmesis. O texto é bacana e soa pop e divertido como um bom filme de ação deve ser. Na sequência, ele aponta o fuzil e esmigalha o crânio de seu adversário. Um assistente passa com uma garrafa cheia de sangue cenográfico, mas os miolos espalhados em cena serão acrescentados em outro momento (suspiro). Atrás do Doutrinador, mais meia dízua de capangas, armas em punho, logo descobrirão como a justiça made in Brazil pode ser implacável. Gustavo Bonafé repete a mesma cena com diversos ângulos várias outras vezes, testando formas de engatilhar a arma, de efetuar o disparo, de reagir a uma nova ameaça. A noite avança e a equipe não dá sinal de cansaço. Fazer cinema, como diz Tarantino, é para os apaixonados. Corta. A equipe prepara a cena seguinte. E o defunto lá, sem perder sua marcação, continua estirado no chão.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.