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Excesso de referências diminui brilho do ótimo Jogador Nº 1

Roberto Sadovski

29/03/2018 19h44

Em uma sequência logo no começo de Jogador Nº 1, um Tiranossauro Rex atropela um cinema que exibe um dos filmes da série Jack Slater. É o jeitinho de Steven Spielberg brincar com o "massacre" que seu Jurassic Park promoveu em cima de O Último Grande Herói, com Arnold Schwarzenegger, um quarto de século atrás. E também é a única vez que o diretor olha para o próprio umbigo em um filme coalhado de referências, homenagens e piscadelas para a cultura pop dos anos 80/90 – justamente a época que o próprio Spielberg ajudou a moldar. Jogador Nº 1, o livro de Ernest Cline, é uma verdadeira carta de amor ao cineasta, e ver o filme se materializar por suas mãos é o melhor dos mundos. Afinal, não é todo diretor capaz de desenhar tanta leveza e fluidez em um material que, tirando o visual fantástico, traz uma trama derivativa e um tanto óbvia. Mas o responsável por E.T. e Caçadores da Arca Perdida injeta tanta honestidade e paixão que o resultado é um dos momentos mais divertidos no cinema nos últimos anos.

Divertido, sim. Mas também um tanto quanto confuso ao equilibrar a história que quer contar com a tonelada de referências que, afinal, fez a fama de sua origem literária. Jogador Nº 1 é a jornada do herói sob o ponto de vista nerd, uma aventura virtual que empresta um monte de A Fantástica Fábrica de Chocolates, somado à progressão narrativa de um videogame, com direito a dicas secretas, chefes de fase e um prêmio inatingível no final. O tabuleiro é a Terra de um futuro distópico próximo, em que boa parte da humanidade prefere trocar a vida real por uma existência virtual dentro de um simulador chamado Oasis. Criado pelo trilionário James Halliday (Mark Rylance), o Oasis é a materialização de uma vida de cultura pop, reunidas em diversos mundos virtuais. Cada "visitante" escolhe um avatar e basicamente pode viver a vida que preferir, sem nenhum risco, ao lado de ícones geek como RoboCop, Batman, Duke Nukken ou Lara Croft. É como se Matrix fosse real, mas com seus habitantes conscientes em estar num mundo criado em computador.

Parzival prepara seu DeLorean dentro do Oasis

A trama começa cinco anos após a morte de Halliday, época em que ele revelou a existência de um easter egg escondido no Oasis, um tesouro que dará ao vencedor sua fortuna, sua empresa e, consequentemente, domínio sobre o mundo virtual. Em um futuro em que o controle do fluxo de informação é também o controle do mundo, não é de admirar que todos querem o prêmio – de gigantes corporativos que enviam centenas de funcionários para desvendar as pistas para o easter egg a hackers dispostos a proteger o mundo da ganância de empresas sem rosto. Neste cenário, é um órfão pobretão que vive numa favela em Columbus com a tia quem descobre a primeira pista (ou "chave") e se torna, ao mesmo tempo, uma celebridade no mundo virtual e um alvo no mundo real. Wade Watts (Tye Sheridan), que que se torna o avatar Parzival no Oasis, pilota uma versão incrementada do DeLorean de De Volta Para o Futuro, é amigo de outro competidor que está construindo uma réplica do Gigante de Ferro (o filme fracassado que Brad Bird fez em 1999) e termina no centro de uma disputa de poder contra Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn), chefe da corporação malvada IOI, ao lado da hacker lendária Art3mis (Olivia Cooke).

Spielberg dirige Jogador Nº 1 sem um pingo de ironia, abusando do mesmo tom sincero dos filmes que ele produziu e/ou dirigiu décadas atrás, como E.T., Os Goonies ou Jurassic Park. Sua paixão e entusiasmo, somados ao domínio absurdo de seu ofício, deixam a aventura sempre dinâmica e interessante – poucos diretores fariam a transição entre fantasia e realidade com tanta habilidade. A falta de riscos, porém, tem um preço. Não há surpresas em Jogador Nº 1 e, consequentemente, há pouca tensão. Por sorte o homem no comando é Spielberg: ao entender as limitações do roteiro, ele volta suas atenções para a construção do mundo e para a nova caixa de brinquedos em mãos. Ao entender a dinâmica competitiva apresentada pelo Oasis, ele cria a adaptação perfeita de um video game para o cinema – mesmo sem seguir nenhum jogo específico. Cada "fase" é executada com brilho e, mesmo quando o efeito não é 100 por cento eficiente (estou falando contigo, "balé em gravidade zero"!), o resultado é um atestado da habilidade de Spielberg em entreter. Mesmo quando ele troca as lágrimas pela adrenalina.

Wade (Tye Sheridan) e Art3mis (Olivia Cooke) se encontram fora da Matrix

A fórmula só desanda quando a narrativa se torna menos importante que as referências. É claro que um filme como Jogador Nº 1 só existe porque a base de sua narrativa foi construída na cultura pop. Ele conta com a bagagem que sua plateia possui para acompanhar a trama de forma suave. Mas em certos momentos o turbilhão de personagens parece atropelar a fluidez da história. Não é só o jogo clássico do Atari que se torna chave para a conclusão da história. São as participações-relâmpago que surgem como ruído, que distraem quando dão as caras por não fazer parte da espinha dorsal da história, que estão ali por ser cool e para os nerds e geeks mais "dedicados" competir para ver quem entende mais de cultura pop. Jogador Nº 1 é, afinal, uma celebração de tudo aquilo que os apaixonados por cinema (e games, e HQs, e animação) trazem perto do coração. Ao contrário de O Último Grande Herói, que sugeriu um clímax épico com Drácula, Hannibal Lecter e Freddy Krueger (mas se contentou com o único vilão que o herói já havia derrotado), Steven Spielberg junta ícones modernos numa mesma cena. Num mundo perfeito, eles também fariam parte da trama. Assim como Wade Watts, montado em seu óculos de realidade virtual, na maior parte do tempo eles também só estão observando a história passar.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.