Governo Donald Trump influenciou segunda temporada de The Handmaid´s Tale
Pelas galerias e salas da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, uma dúzia de moças passeava de cabeça baixa, mãos dadas, passos tímidos. Seus trajes, iguais: uma longa túnica vermelha, coberta com uma espécie de touca branca, como uma freira escarlate. "Eu acho fascinante, para ser honesto", comenta, com uma risada, o produtor e roteirista Bruce Miller, na capital carioca para participar da feira Rio2C. "É estranho circular e ver tantas aias, as moças vestiram o personagem!" Miller se refere, claro, à indumentária das protagonistas de The Handmaid´s Tale, programa que ele criou ao adaptar o livro de Margaret Atwood, e que se tornou uma das melhores séries de 2017. Essa ficção científica distópica chega agora ao Brasil pelo Paramount Channel, junto com sua segunda temporada, já dando as caras nos Estados Unidos.
Cérebro por trás de séries tão distintas como Eureka e The 100, Miller buscava levar o romance de Atwood desde a primeira vez que o leu. "Bom, o livro nunca deixou de estar disponível, e ele foi publicado há mais de trinta anos", conta. "Acho então que não é uma história qualquer, é uma história com a qual as pessoas se conectam. Eu mesmo li várias vezes ao longo dos anos, e cada vez que o fazia pensava, 'este é o momento perfeito para ler este livro'. Acho que é eternamente relevante." The Handmaid´s Tale, ou O Conto da Aia, chegou às livrarias em 1985, trazendo uma distopia opressora, em que o poder do Estado é tomado por fanáticos fundamentalistas cristãos, em que as mulheres são subjugadas em uma sociedade patriarcal, tornando-se objeto de seus mestres. O motivo para a revolução foi uma queda drástica na taxa de natalidade e, com o futuro da humanidade ameaçado, as raríssimas mulheres férteis perdem sua individualidade e independência para se tornar reprodutoras.
Nas mãos de Miller, a série foi fundo no simbolismo e não deixou de lado as semelhanças com o mundo real. "Foi curioso você mencionar os trajes", destaca o produtor. "Tudo em cena possui um significado, e o figurino remete à misoginia, ao aprisionamento… em tempos complicados, é uma mensagem sobre abuso." Essa característica atemporal de O Conto da Aia, o livro, é refletida na própria série, já que sua primeira temporada foi produzida antes de o mundo ser bombardeado com denúncias de assédio e uma resposta vigorosa da sociedade, como o movimento #MeToo. "Acho quer as mesmas forças que criaram o movimento também ajudaram a construir a série", continua Miller. "Acho que todos fomos afetados pelo mesmo fluxo de ideias, então Handmaid´s não conduz o diálogo, mas talvez ilumine um caminho. Somos apenas uma de milhões de peças convergindo na mesma direção."
A primeira temporada de The Handmaid´s Tale foi exibida enquanto a indústria do entretenimento via o mega produtor Harvey Weinstein despencar ante uma avalanche de denúncias de abuso, assédio e estupro. Além disso, os Estados Unidos experimentaram uma virada política conservadora com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Nada disso passou incólume pelas lentes de sua equipe criativa. "Acho que seria impossível não ter alguma influência, principalmente quando o movimento ocorre na indústria em que trabalhamos", observa. "Além de ser roteiristas em The Handmaid´s Tale, as pessoas dentro do programa também são maridos e esposas, mães e filhas, que também são influenciados por mil coisas diferentes, que eu sempre espero que eles tragam à mesa." Quanto ao novo presidente, Miller lamenta algumas de suas declarações e o retorno de uma mão conservadora influenciando a sociedade: "Quando eu comecei a escrever a primeira temporada, estávamos no começo da corrida presidencial, eu sequer sabia quem seriam os candidatos. Acredito que seja mesmo uma evidência, muito triste, que alguns dos conflitos que a série espelha já aconteçam há trinta ou quarenta anos, e não mudaram muito".
Não que o mundo esteja caminhando para uma teocracia em que mulheres férteis sejam escravizadas como a protagonista da série, Offred (ou "of Fred", ou seja, que pertence a Fred), separada de sua filha e obrigada a se dobrar ante o fundamentalismo que tomou o país, um trabalho brilhante da atriz Elisabeth Moss. "Não acho que estamos caminhando para um futuro como o de The Handmaid´s Tale", diverte-se Miller, apontando que as forças que criaram este futuro foram muito específicas, de uma queda absurdamente drástica na taxa de natalidade, de 90 ou 95 por cento, a seus efeitos na sociedade, somado com a ascensão da busca por uma solução baseada na fé. "Apesar de tudo, os Estados Unidos são um país enorme e diverso, eu não acho que gostamos de outras pessoas nos dizendo o que pensar ou no que acreditar."
Por outro lado, ele enxerga alguns aspectos do relógio retrocedendo em termos do modo como as mulheres são tratadas, principalmente com Trump, e seu histórico de assédio, na Casa Branca. "Quando temos um governo que diz coisas não só que eu discordo, mas que impressiona com tanta gente pensando de uma certa forma, acredito que a arte possa iluminar um ponto de vista que alguém tenha dificuldade em entender", filosofa. "Talvez a chave seja o modo de resolver alguns problemas reais, hoje, para que eles não se evoluam para algo tão terrível." Ele aponta a a cerimônia de reprodução relatada no livro e reproduzida na série, o que na verdade é uma perversão de algo que já fazemos hoje, que é a maternidade por substituição, ou a "barriga de aluguel". "É uma extrapolação, mas percebemos como algo comum pode se tornar um caminho para escravizar toda mulher fértil', explica. "Esse pensamento me ajuda a ver alguns problemas de hoje e enxergar uma solução que tivesse potencial para ser algo tão terrível."
Essa inventividade está sendo colocada à prova na nova temporada de The Handmaid´s Tale, já que o livro de Margaret Atwood foi coberto em sua primeira temporada e o trabalho de Miller e sua equipe é justamente imaginar o que acontece num futuro em branco. "De certa forma é até mais fácil", explica. "Fiquei furioso quando eu li o livro pela primeira vez, já que era uma primeira temporada de TV perfeita, e tudo que queremos é mais!" O processo, continua o produtor, começa em um brainstorm com seus roteiristas para lembrar de conversas cotidianas, histórias que experimentamos todos os dias, e imaginar o que vem depois como um exercício. "A verdade é que aprendemos muito com a primeira temporada, descobrimos quais partes do livro traduziam bem para outra mídia, e usamos esse conhecimento para guiar a nova", conta. "Sem falar que, em minha carreira como roteirista de TV, isso é o que eu sempre fiz como regra, que é tirar ideias da cabeça em vez de adaptar algo já publicado, principalmente com a fidelidade com que trabalhamos."
A mitologia criada em The Handmaid´s Tale é terreno fértil para um programa sobre um futuro distópico – mesmo que ele não seja tão diferente assim do que existe hoje. A tecnologia, no fim, é menos importante do que as discussões que a série traz. "Esse diálogo começa começa no próprio livro", continua. "Mesmo com todas as influências, com o estado das coisas, com nossa evolução, eu sinto que são questões ainda sem resposta. São discussões interessantes e muito importantes, mesmo três décadas depois." Bruce Miller toma um gole de água, olha para a paisagem carioca fora da janela, e conclui: "Mas meu negócio é fazer as perguntas, e não trazer as respostas!".
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