Parece piada: Terry Gilliam agora perdeu os direitos de seu Don Quixote

A essa altura a história nem parece mais engraçada. O cineasta Terry Gilliam levou duas décadas e suportou incontáveis derrotas até finalmente concluir seu já mítico O Homem Que Matou Don Quixote. Nem um AVC derrubou o diretor, que finalmente mostrou seu filme ao mundo no encerramento da última edição do Festival de Cannes. Mas a mão do destino não parece contente com o homem que desafiou os deuses para realizar sua visão: depois de apresentar um veredito favorável ao diretor pouco antes da exibição no festival francês, o mesmo tribunal em Paris reverteu o resultado, dando os direitos do filme ao produtor Paulo Branco. É mais uma peça na engrenagem atrofiada que levou o projeto para litígio por dezoito meses e mais um golpe em Gilliam, que esperava a essa altura apenas a oferta de distribuidores para levar a obra aos cinemas.

Paulo Branco entrou no jogo de Quixote já na prorrogação, quando em 2016 assinou um contrato com o diretor lhe garantindo os direitos do filme, em troca de um influxo de caixa na produção. Gilliam diz que o produtor jamais cumpriu sua parte no contrato, o deixando livre para procurar outros investidores; Branco, por sua parte, repete para quem quiser ouvir que a finalização de O Homem Que Matou Don Quixote foi realizada de maneira ilegal, sem o consentimento de sua produtora, a Alfama Films. Em uma entrevista ao Screen Daily, Branco não foi nada contido. "Vamos cobrar com juros de todos envolvidos com essa produção ilegal e, acima de tudo, com todos que foram cúmplices em sua exploração ilegal", disse, furioso. "Todos são responsáveis, de Gilliam aos produtores que assinam o filme, seu distribuidor na França e a direção do Festival de Cannes." Ouch…

Gilliam no set com seu Quixote, o ator Jonathan Pryce

A essa altura, a única certeza é que Paulo Branco está determinado a enterrar O Homem Que Matou Don Quixote em uma cova profunda, e que a batalha nos tribunais será longa e penosa. Ele obviamente não está listado no IMDb como parte da equipe do filme, que aponta, por sua vez, doze profissionais entre produtores, co-produtores e produtores executivos. Somado aos responsáveis pela distribuição e pela exibição do filme em Cannes, é uma lista considerável de pessoas na mira de Branco, principalmente se levando em conta que é alguém distante do projeto há dois anos – e que muito provavelmente acompanhou sua execução e finalização, noticiada no mundo todo como prova da obsessão de Gilliam em tirar o projeto de sua mente.

Depois de dúzias de modificações em seu roteiro, o filme que finalmente foi exibido em Cannes (e que estreou nos cinemas franceses simultaneamente) conta a história de Toby (Adam Driver) um publicitário que se envolve com um sapateiro espanhol (Jonathan Pryce) que garante ser o cruzado Don Quixote. Sua jornada passa de cômica a dolorosamente surreal quando Toby tem de encarar as consequências de um filme que ele realizou quando jovem, e que alterou a vida de todos em uma pequena aldeia espanhola. O choque entre o real e o onírico faz parte da longa carreira de Terry Gilliam, que encarou o projeto como espelho de sua própria jornada como realizador. Talvez essa batalha nos tribunais seja a maneira de o destino desafia-lo mais uma vez a reforçar suas convicções como artista. Talvez ele tenha assinado um contrato ruim e não tenha mesmo nenhum direito sobre seu filme. Mas O Homem Que Matou Don Quixote sobreviveu a desastres naturais, ataques cardíacos, uma ciranda interminável de atores e a total incerteza acerca de sua viabilidade cósmica. Se Terry Gilliam cair, pode ter certeza que será lutando.