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Sem ceder a sustos fáceis, Hereditário surge como o melhor terror do ano

Roberto Sadovski

21/06/2018 03h38

Hereditário traz todos os símbolos de um tipo de filme de terror clássico. A casa assombrada. O espírito maligno à espreita. Os inocentes corrompidos. Crianças que parecem pertencer a outro plano de existência. Possessão demoníaca. Rituais satânicos. É fascinante, entretanto, observar como o diretor e roteirista Ari Aster aos poucos desconstrói cada elemento para criar um animal próprio, usando de nossa própria familiaridade e expectativas para se afastar do terror direto, de sustos fáceis, banhado em choque e sangue. O que ele cria em seu lugar é uma experiência sufocante, em que a unidade familiar, porto seguro histórico, termina prisioneira de uma herança que devora as próprias entranhas.

O centro da trama é Annie Graham (Toni Collette, numa performance absolutamente irretocável), que no começo do filme enterra sua mãe, Ellen. Aos poucos o roteiro revela como a matriarca se afastara da família anos antes, mas retornou relutante aos cuidados da filha com o avanço de sua doença. Sua morte, porém, aos poucos afasta a sombra que cobria seu passado, e o destino do pai e do irmão de Annie se tornam pistas para o terror que se avizinha. Tudo converge para a relação de Ellen com a neta, Charlie (a estreante Milly Shapiro, igualmente brilhante), uma pré-adolescente que demonstra em seus hábitos incomuns algo além das mudanças que chegam com a explosão de hormônios. O quadro é completo com seu irmão mais velho, Peter (Alex Wolff), que guarda enorme ressentimento da mãe, e de seu pai, Steve (Gabriel Byrne), aparentemente único resquício de sanidade no teto da família Graham.

Toni Collette entrega uma de suas melhores performances

Uma segunda tragédia, executada de maneira extremamente desconfortável e impactante, desencadeia eventos que colocam a família no centro de uma história de adoração demoníaca, possessão e morte – nem sempre nessa ordem. Aster, habilidoso já em seu primeiro filme, é adepto da escola da sugestão, salpicando o crescendo da atmosfera mais e mais densa com momentos de puro horror, o que amplifica seu impacto. Em nenhum momento Hereditário apela para o terror visual (embora abrace o absurdo em seu clímax), optando pelo clima sufocante que não dá trégua em pouco mais de duas horas de filme. A melhor sacada do diretor é conduzir a trama como se fosse um drama familiar, desviando seu caminho para o sobrenatural nos momentos mais inesperados.

Filmes de terror com a pegada de Hereditário parecem ter proliferado nos últimos anos, com histórias inteligentes e surpreendentes como Corrente do Mal, A Bruxa e Ao Cair da Noite surgindo como alternativa para filmes mais diretos como a (ótima) série Invocação do Mal. Mas eles não são novidade. O horror inglês do pós-Segunda Guerra não raro abraçavam a filosofia de que o verdadeiro mal não eram entidades do além, e sim o ser humano e sua busca incessante por prazeres, poder ou devoção a entidades inferiores. É fácil também encontrar paralelos no filme de Aster com clássicos do quilate de O Exorcista e O Bebê de Rosemary, descendentes diretos dessa escola que testava os nervos da platéia com uma evolução narrativa culminando numa explosão de medo. Mas não espere em Hereditário o impacto visual de Regan sendo dilacerada pelo demônio Pazuzu, ou o conformismo de Rosemary ao encarar os olhos de seu filho. A maior herança abraçada por Ari Aster é a compreensão de que, para as pessoas tocadas pelo mal absoluto, fugir de seu destino não é uma opção.

Milly Shapiro e Toni Collette em um filme sobre mães e filhas

É essa, afinal, sua visão para Hereditário: uma tragédia familiar manipulada como um filme de terror, que tempera seu ritmo opressor com uma sensação de pavor sufocante. Seu sucesso, por sinal, repousa inteiramente nos ombros de Toni Collette, que caminha da resignação à esperança, somente para despencar num abismo tomado pelo mal. É com ela que experimentamos o desespero de uma marcha maligna que parece irrefreável, e é por causa dela que "compramos" um clímax tão violento e tão absurdo. Esse é o testamente dos melhores filmes de terror: a experiência não termina quando as luzes se acendem. O medo, nas mãos habilidosas de Ari Aster, é resultado de um desconforto crescente, a sensação de que nossos passos são constantemente vigiados por forças muito além de nosso controle. O verdadeiro terror, afinal, não é aquele que você captura com os olhos, e sim aquele que você enxerga em sua mente.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.