Topo

Steve Ditko: o legado do artista que ajudou a criar a Marvel

Roberto Sadovski

08/07/2018 18h23

O mundo da arte e da cultura pop está mais triste. Steve Ditko, um dos artistas mais geniais da história, deixou este plano. Ele tinha 90 anos e há décadas vivia de forma discreta, sem dar entrevistas, sem fazer oba oba em cima de suas criações que, mais do que nunca, abraçaram o mainstream, como Homem-Aranha e Doutor Estranho. Eu escrevi sobre a vida bizarra e misteriosa de Ditko quando o Mestre das Artes Místicas chegou aos cinemas dois anos atrás, e foi fascinante levantar sua biografia para entender (ou ao menos tentar) as engrenagens que moviam um desenhista que virou as costas para fama e fortuna, dedicando-se ao objetivismo, filosofia que o homem enfatiza seus valores e suas ações à luz da razão, sublinhando noções de individualismo, autossustentação e capitalismo: ações valem mais do que palavras.

E foi assim que Ditko viveu. Agindo, criando, dando ao público novos planos de existência e novas noções de heroísmo no campo da fantasia. Por outro lado, ele não falava sobre sua arte, não dava entrevistas, não queria explicar o que já era dite de forma direta pela ponta de seu lápis. Na Marvel, que ele ajudou na fundação ao lado de Stan Lee e Jack Kirby, foi co-criador do Homem-Aranha (e de toda sua galeria de vilões clássicos) e do Doutor Estranho. Ao se afastar da empresa em 1966 (motivos até hoje não revelados, mas ele comentou no último ano a um de seus poucos amigos que estava "em paz" com Lee), foi para a Charlton e, depois, para a DC, soprando vida ao Questão, Rapina e Columba, o Rastejante e Shade. De volta à Marvel como freelancer nos anos 90, criou a Garota-Esquilo, que recentemente ganhou status cult e vários novos fãs mais jovens na editora.

Poucos artistas são capazes de mudar a estrutura da cultura pop, e Steve Ditko foi um deles. Em vez de mais uma vez mergulhar em sua vida, preferi dar uma espiada nos personagens que ele criou e que se tornaram parte da vida, da carreira e do imaginário de milhões. Um legado que fez dele imortal, em seis de suas maiores criações.

DOUTOR OCTOPUS

Stan Lee demorou para dar crédito de co-criador a Steve Ditko quando os dois trabalharam em The Amazing Spider-Man, mas é fácil apontar a potência criativa do artista na extensa galeria de vilões do Aranha, um tsunami de criatividade que, por quase três anos, presenteou os leitores com um novo personagem a cada mês. O Doutor Octopus talvez seja o que melhor encapsula as ideias de Ditko para a série: o vigor da juventude em conflito com o peso da experiência. Esse abismo geracional, que colocou um adolescente contra um homem de meia idade, representa parte das ideias que o artista queria explorar no título, conseguindo aqui um completo triunfo. Mais ainda, o visual de Otto Octavius passava longe dos vilões musculosos e ameaçadores, sendo ele retratado como um homem comum, levemente acima do peso, com o foco de sua ameaça concentrado em sua genialidade, representada pelos quatro tentáculos mecânicos que ele criou – e que terminaram se tornando a base de sua insanidade.

RAPINA E COLUMBA

De certa forma, os irmãos combatentes do crime que Ditko criou com Steve Skeates em 1968 se tornaram sua maior expressão política em uma série mainstream. Além de abraçar algumas características dos animais que os inspiraram, havia muito de uma diferença ideológica nos dois irmãos, um representando a águia da guerra, outro o pombo da paz. Essa dinâmica informava muito de suas aventuras, em que o combate ao crime muitas vezes era coadjuvante ao choque de ideias, a agressividade de Rapina e o pacifismo de Columba. Outra diferença inovadora em relação às duplas de super-heróis nos quadrinhos da época era a ausência de uma relação mentor/protegido. Irmãos, Hank e Don Hall eram iguais em estatura e importância, e não eram subservientes um ao outro. Memso quando a DC matou Don durante a Crise nas Infinitas Terras, substituindo-o por Dawn Granger, as diferenças foram mantidas. E também o design dos uniformes, um triunfo que em breve chega ao serviço de streaming da DC na série live action Titans.

GAROTA-ESQUILO

O mais impressionante não é Steve Ditko ter criado a Garota-Esquilo ao voltar para a Marvel nos anos 90, quase três décadas depois de sua partida. O que surpreende é ele ter bolado um personagem de otimismo inesgotável e nuances despreocupadas e irreverentes – isso num momento em que toda indústria dos quadrinhos mergulhava em uma "era de trevas", com os sucessos da época espelhando escuridão, violência e pessimismo – foi a época do surgimento da geração Spawn da Image, a morte do Superman, Batman com as costas quebradas, o aumento nas vendas de anti heróis como Justiceiro, Motoqueiro Fantasma e Wolverine. O próprio Ditko parecia um criador anacrônico, até em seu modo de vestir, como se ainda estivesse em algum ponto entre as décadas de 50 e 60. O traje da Garota-Esquilo não trazia armas ou apêndices biônicos ou ombreiras (!): era simples e eficiente, e até hoje não mudou quase nada. Mesmo quando a heroína, agora redescoberta e cool, encontrou uma nova geração de admiradores.

O QUESTÃO

Sem o herói sem face criado para a Charlton, que depois foi incorporado ao universo DC, não haveria Rorschach ou Watchmen ou o DNA dos justiceiros urbanos modernos. Criado histórias de apoio no gibi do Besouro Azul (que na época foi remodelado por Ditko), o Questão era uma atualização de outra criação de suas criações, o enigmático Mr. A, desviando-se dos conceitos filosóficos do objetivismo que o artista seguia para abraçar uma crença inabalável entre certo e errado, sem tons de cinza. Embora o personagens nunca fosse elevado ao primeiro time da DC (ele foi reformulado alguns anos atrás, passando a ser a identidade secreta de uma ex-policial de Gotham, Renée Montoya), a base definida por Ditko permanece a mesma, com o visual enxuto (a máscara que apaga o rosto de seu usuário, o sobretudo) e as idéias inclinadas à direita. O Questão continua como ponto alto a minissérie do final dos anos 80 escrita por Denny O´Neil e desenhada por Denys Cowan. Já o enigma explícito em seu rosto apagado e seu próprio nome permanece um mistério.

DOUTOR ESTRANHO

O próprio Stan Lee, creditado como co-criador do Mestre das Artes Místicas, nunca escondeu o fato que o Doutor Estranho é fruto de um sonho de Steve Ditko, e que sua origem é totalmente fruto de suas ideias. De certa forma, Stephen Strange é a criação mais pura de Ditko, mesclando as necessidades editoriais da Marvel, que nos anos 60 construia seu universo de heróis e vilões, com a sensibilidade artística do desenhista, que misturou influência do surrealismo de Salvador Dali com o apuro criativo de seu colega de trabalho, o rei Jack Kirby. Como resultado, Doutor Estranho habitava histórias de realidades paralelas, ângulos e formas e linhas e cores em profusão, com o herói tentando agarrar-se à sua humanidade em meio a uma variedade de ideias e criaturas e novos mundos. Usar mágicos como personagens de fantasia nunca foi novidade. Mas o Doutor Estranho – e Steve Ditko – foi além ao fazer com que toda a bizarrice em torno de si parecesse real.

HOMEM-ARANHA

Não há a menor dúvida de que a maior criação da carreira de Steve Ditko foi o Homem-Aranha. Stan Lee surgiu com o conceito de um combatente do crime adolescente e passou sua concepção visual ao mestre Jack Kirby. Mas o resultado, segundo o próprio Lee, foi "heróico demais", e a criação foi para as mãos de Ditko. O resto é história. Ele bolou um traje sem botas ou aparatos pesados ou excessivos (o que facilitaria escalar as paredes), jogou fora o conceito de armas que disparavam teias, criando o mecanismo preso aos pulsos do herói, e cobriu seu rosto por inteiro para que ninguém desconfiasse que, por trás de um super-herói audaz, escondia-se um adolescente cheio de incertezas, que obedecia a um único mantra: grandes poderes trazem grandes responsabilidades. Ocupado em tocar o resto do nascente universo Marvel, Lee entregava a Ditko o plot básico das histórias, deixando a criação totalmente em suas mãos. Tudo que é mais característico de Peter Parker espelha o próprio Steve Ditko: o desconforto de um trabalho público escondido atrás de uma "máscara", a energia irrefreável, a personalidade imperfeita, a incapacidade de agir em grupo, resultando numa solidão aguda. Tudo estava lá desde o princípio, e continua a guiar os passos do maios super-herói dos quadrinhos modernos. Mesmo que, na vida de Steve Ditko, o Homem-Aranha já fosse uma lembrança distante.

 

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.