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30 anos atrás, Akira formou a ponte perfeita entre Oriente e Ocidente

Roberto Sadovski

17/07/2018 05h40

Akira não foi a primeira animação japonesa a romper as fronteiras de seu país. Também não foi o primeiro mangá traduzido para outra mídia. Mas o filme de Katsuhiro Otomo, que completa três décadas de seu lançamento essa semana, trouxe uma mistura de filosofia e ficção científica, mergulhados em uma estética cyberpunk e uma dinâmica visual sem igual, que revelou um naco significativo da cultura nipônica para entusiastas da cultura pop do outro lado do globo. Akira é um caldeirão de referências, um coquetel que entrega um futuro distópico encharcado com comentário social, rebeldia juvenil e filosofia, uma ponte conectando o visual vibrante de Blade Runner, a alienação adolescente de Juventude Transviada, o horror físico de Videodrome e a atmosfera claustrofóbica de 2001 – Uma Odisséia no Espaço.

O resultado é uma ficção científica explosiva, em que forças governamentais obscuras enfrentas telepatas superpoderosos em uma Neo Tóquio reconstruída anos depois de sua devastação pela Terceira Guerra Mundial. Gangues trazem violência às ruas, tomadas por um governo repressor que enfrenta forças rebeldes com pouca esperança de vitória. Sem Akira boa parte da cultura pop contemporânea simplesmente não existiria, já que suas ideias e conceitos e personagens e temas estão impressos em filmes e animações e games e música. John Gaeta, o gênio por trás dos efeitos visuais de Matrix, não esconde que sem Akira não haveria o revolucionário bullet time. Poder Sem Limites, de Josh Trank, e Looper, de Rian Johnson, basicamente reescrevem o plot de Otomo em outra linguagem. A Origem traz o DNA do filme, assim como a série Stranger Things.  A nova trilogia Star Wars traz na jornada de Anakin Skywalker um espelho do conflito interno que transforma o jovem Tetsuo em vilão. Fenômenos mundiais como Pokemon, Naruto e Dragonball devem sua existência ao caminho pavimentado por Akira.

A silhueta majestosa de uma Neo Tóquio infestada por gangues

O filme de Katsuhiro Otomo começou alguns anos antes, quando o próprio diretor escreveu o mangá, publicado em forma seriada na Young Magazine entre 1982 e 1990. Akira gira em torno de Kaneda, líder adolescente de uma gangue de motoqueiros, que se vê no meio da luta entre o governo japonês, representado pelo Coronel Shikishima, e um grupo rebelde, encabeçado pela ativista política Kei. Nesse futuro pós-apocalíptico, eles precisam trabalhar juntos para impedir que Tetsuo, amigo de infância de Kaneda, e potencialmente o telepata mais poderoso da Terra, ceda a seu estado mental frágil e desperte outra pessoa com habilidades similares, o poderoso Akira. O resultado da combinação de forças seria o fim do mundo. Claro que a ambientação cyberpunk e o mergulho na ficção científica são o tabuleiro para Otomo discorrer sobre corrupção e poder, sobre isolamento e política. Sobre o certo, o errado e a gigantesca área cinzenta entre os dois.

Akira poderia ser mais um mangá, mas a estrutura menos hermética e os temas mais universais contribuíram para que a cultura pop japonesa desse um salto para conquistar o resto do mundo. Nos Estados Unidos, a série foi colorizada e lançada em 1988 pelo selo Epic Comics, um braço da Marvel, marcando a primeira história em quadrinhos regular a ganhar um novíssimo processo digital de separação de cores. Foi uma revolução no modo como as HQs eram produzidas e lançadas, um salto qualitativo abraçado três anos depois com o lançamento da Image Comics. No Brasil, essa série, em 38 edições, chegou às bancas pela Editora Globo – embora as últimas edições só tenham saído por causa de um acordo com a livraria e editora Devir. A versão em cores de Akira hoje é uma raridade, com a série sendo relançada em seis volumes em preto e branco – base da nova versão disponível no Brasil, agora com o selo da Editora JBC, que já lançou dois dos seis volumes da saga.

O corpo de Tetsuo cede ao poder descomunal de sua mente

O próprio Katsuhiro Otomo não tinha o menor interesse em desenvolver Akira fora das páginas do mangá, mas a possibilidade de reinterpretar sua própria história, e fazer o salto de criador de quadrinhos para diretor de cinema, foi irresistível. Ele manteve controle criativo total em todo o processo, condensou sua história original e foi irredutível quanto a qualidade. Diferente dos animes da época, em que a animação ainda era limitada e repetitiva, Otomo insistiu em uma fluidez visual sem paralelos. Seu elenco gravou os diálogos antes de ser iniciado o processo de animação (uma novidade em animes) e imagens digitais foram agregadas ao processo tradicional para criar sua Neo Tóquio futurista, jamais vista antes no cinema ou em qualquer mídia. A ambição teve um custo, e Akira chegou aos cinemas com um orçamento de 8.2 milhões de dólares, o maior para um anime até então. Aos poucos o filme foi tomando o resto do mundo, com os cinemas americanos recebendo o longa em dezembro do ano seguinte, e o público brasileiro finalmente testemunhando o futuro terrível imaginado por Otomo em agosto de 1991.

Talvez o maior legado de Akira tenha sido escancarar para o mundo que a animação podia abordar temas mais adultos e se afastar definitivamente do público infantil. Depois dele, obras tematicamente e visualmente complexas como Ghost in the Shell e Neon Genesis Evangelion saíram da gaveta. O Estúdio Gibli lançou o longa Meu Amigo Totoro meses antes de Akira, mas o gênio Hayao Miyazaki levou uma década para criar animações igualmente intensas como Princesa Mononoke e A Viagem de Chihiro. Três décadas depois, seu futuro continua a influenciar artistas, músicos e designers – ganhou até contornos proféticos quando Tóquio foi escolhida para sediar a Olimpíada de 2020. O cinemão hollywoodiano continua flertando com a idéia de um remake ianque de Akira, projeto que já passou pelas mãos de dúzias de poderosos, nenhum deles encontrando o tom certo para materializar a visão sombria de Katsuhiro Otomo. Se o filme vai acontecer ou não, pouco importa. Akira continua sendo uma obra única e atemporal, um dos melhores exemplares de ficção científica jamais criados. O cinema, e a cultura pop, são melhores porque dois adolescentes delinquentes, numa cidade prestes a entrar em ebulição, ousaram desafiar o sistema e espiar o que havia do outro lado. Quem os acompanhou na jornada nunca mais voltou.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.