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Será que o Coringa de Heath Ledger pode ser arruinado pela nova versão?

Roberto Sadovski

18/07/2018 06h13

 

Batman – O Cavaleiro das Trevas, uma das melhores adaptações de um personagem dos quadrinhos para o cinema, completa hoje 10 anos. Ou seja: há uma década os fãs, críticos e entusiastas da cultura pop tentam decifrar o elemento que fez a obra de Christopher Nolan soar acima do "filme de super-heróis" para se tornar algo muito além. Uma década desde que Heath Ledger criou, com seu Coringa, o vilão definitivo do cinema do novo século. Eu falei sobre o legado de O Cavaleiro das Trevas no começo do ano, mas com o aniversário do filme, não é difícil apontar que seu sucesso arrebatador repousa em grande parte nas costas de Ledger. Um legado que o estúdio pode colocar num pedestal frágil com a nova versão do vilão que começa a tomar forma ainda este ano… Mas a gente já já chega em Joaquin Phoenix.

É possível enxergar neste Batman de 2008 a força motriz que impulsionou as adaptações de personagens dos quadrinhos que hoje dominam o horizonte do cinemão ianque. Para o bem e para o mal, a aventura se tornou a régua pela qual cineastas encontraram um caminho para tirar heróis de gibis do papel. Em alguns casos, a influência foi determinante para encarar um personagem fantástico com uma dose de realismo que coroa a empreitada, como foi o caso de Logan, despedida de Hugh Jackman do mutante que lhe deu uma carreira. Em outros, o casamento de realismo e sombras quase pulverizou o nascente Universo Estendido DC: O Homem de Aço, feito por Zack Snyder sob a sombra do morcego, seguiu um tom melancólico e equivocado que transformou o Superman, um herói solar e otimista, num vingador relutante, sempre cabisbaixo, encarando seus dons como um fardo.

Jack Nicholson em Batman: o jeito certo

O maior legado de O Cavaleiro das Trevas foi mesmo o Coringa deixado por Ledger. Pouco antes de sua estreia, a antecipação pelo filme atingiu níveis alarmantes, com os fãs envolvidos em uma campanha de pré-lançamento brilhante, anabolizada pela morte trágica do jovem astro – e pela mítica que ela trouxe. Mesmo com atores e técnicos que trabalharam no filme afirmando repetidamente que Heath estava se divertindo como nunca no papel do Palhaço do Crime, na mente de alguns irresponsáveis o papel teria "perturbado" sua mente frágil, culminando com o coquetel de remédios que lhe tirou a vida. É uma desonestidade que quase minou o trabalho brilhante do ator – e eu digo "quase" porque o tempo se encarregou de apagar esse tipo de bobagem, deixando que seu retrato do vilão, pelo qual ele foi laureado com um Oscar póstumo de melhor ator coadjuvante, falasse mais alto.

Pouco antes de O Cavaleiro das Trevas entrar em produção, o anúncio de Heath Ledger como o Coringa deixou muitos fanáticos ouriçados, principalmente pela lembrança ainda forte do que Jack Nicholson criara quase duas décadas antes no Batman de Tim Burton. As primeiras imagens do filme, e um prólogo veiculado no lançamento em Imax de Eu Sou a Lenda pouco mais de seis meses antes, apagaram o incêndio. Logo o mundo pode ver o que Ledger havia criado. Um psicopata, uma força da natureza, um personagem tão fascinante quanto perigoso, um amálgama de maneirismos (a língua constantemente correndo pela enorme cicatriz em sua boca, a voz anasalada, os cabelos ensebados, a maquiagem de palhaço perpetuamente escorrida) que resultou num vilão que ia além dos conceitos de bem e mal. "Algumas pessoas só querem ver o mundo queimar", diz, a certa altura, Michael Caine, materializando um Alfred perfeito, a um estupefato Bruce Wayne (Christian Bale, contente em não ser o centro das atenções).

Jared Leto em Esquadrão Suicida: o jeito errado

Batman – O Cavaleiro das Trevas abraçou seu Coringa e usou seu potencial explosivo como seu maior trunfo. Ledger e Nolan trabalharam para criar o nêmesis perfeito, um antagonista imprevisível que desafia o herói constantemente, deixando claro que ele não pode ser comprado, chantageado ou ameaçado. Como lidar com alguém tão amoral e tão inumano? Como racionalizar com um sociopata que não funciona na mesma frequência do resto da humanidade. Nolan conseguiu em seu filme alcançar o equilíbrio perfeito com o Batman e o Coringa, retratando-os como duas faces de uma mesma moeda – e não é em absoluto ao acaso a escolha do Duas Caras como terceiro eixo da narrativa, que navega fundo na dualidade humana e joga com nosso código moral. Uma década depois, eu realmente me pergunto se o plano do Coringa teria um outro desfecho se fosse apresentado para parte da plateia atual, que muitas vezes parece mesmo querer ver o mundo consumido pelas chamas.

Um dos maiores triunfos do Coringa de Heath Ledger, entretanto, foi mostrar que não existe um "modo certo" de interpretar o personagem. Nos anos 60 Cesar Romero escolheu criar um palhaço piadista em busca de dinheiro. Nicholson veio depois, com o capanga vaidoso que vê seu fiapo de sanidade evaporar-se ao se transformar numa aberração deformada. Mark Hamill pegou este conceito e adicionou uma dose ainda maior de loucura ao retratar o Coringa na série animada do Batman nos anos 90. Nos quadrinhos, ele já teve dúzias de interpretações, tendo como constante o mistério acerca de sua origem e sua total entrega ao caos. Depois da versão definitiva de Heath Legder, o vislumbre seguinte do personagem foi nas mãos de Jared Leto em Esquadrão Suicida, mostrando que, se não existe um modo certo, com certeza sua versão seria o "modo desastroso" para construir o Coringa.

Boa sorte a Joaquin Phoenix, ele vai precisar….

Por isso que o anúncio de um filme protagonizado pelo Palhaço do Crime, com Joaquin Phoenix no papel principal, e o diretor Todd Phillips (Se Beber, Não Case) no comando, levanta um caminhão de dúvidas em relação ao cuidado da Warner/DC com seu legado. Obviamente o talento de Phoenix nunca esteve em questão. Mas há um motivo para o Coringa ter sido usado como protagonista em raríssimas ocasiões em mais de 75 anos desde sua criação: ele não possui arco dramático, ele não tem um objetivo claro, ele é um agente do caos. O Coringa é o gatilho que dispara mudanças nos personagens a seu redor. Uma história em quadrinhos lançada pouco depois de O Cavaleiro das Trevas, assinada por Brian Azzarello e Lee Bermejo, traz Coringa no título mas tem como protagonista um de seus capangas, assombrado pela influência assassina de seu chefe mentalmente instável. Apostar no vilão como força motriz de um longa – que não terá o Batman em cena – é arriscado.

O risco, claro, pode ser benéfico. Coringa terá orçamento modesto (55 milhões de dólares, mesma coisa que o primeiro Deadpool) e não fará parte do Universo Estendido DC. Sem a pressão, Phillips e Phoenix podem seguir uma direção mais experimental e – aí, sim! – mais adulta. Explorar a mente de um psicopata, principalmente em um ambiente de fantasia como são as adaptações de heróis dos quadrinhos, pode render um produto original e surpreendente. O que é justamente o que a DC precisa depois do fiasco de sua tentativa em interligar filmes diferentes: pensar fora da caixinha e deixar seus criadores livres. Aquaman periga funcionar por causa disso, assim como Shazam! e Mulher-Maravilha 1984. A única pedra no caminho deste Coringa é justamente a lembrança inesquecível da performance de Heath Ledger, um psicopata que, entre outra pérolas, recusava-se a matar seu maior inimigo por ele ser muito… divertido!

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.