Primeira heroína transgênero em Supergirl é diversidade feita do modo certo
A San Diego Comic-Con 2018, ao contrário de suas edições anteriores, terminou sem maiores novidades, grandes anúncios ou momentos inesquecíveis. Ou quase. Já no fim da festa, a atriz Nicole Maines foi anunciada como parte do elenco de Supergirl, série da CW que mostra as aventuras da Garota de Aço, como uma repórter novata que aos poucos evolui para a identidade da heroina Dreamer, uma jornada semelhante à de Kara-El para se tornar a personagem-título da série. Mas não é um papel qualquer para uma artista qualquer: Nicole é uma mulher trans, e sua escolha marca a primeira heroína transgênero da história da televisão. Ponto para a DC!
Em um momento que representatividade e diversidade ocupam espaço cada vez maior em cada assunto pertinente à cultura pop – um reflexo das transformações que a sociedade tem experimentado -, a novidade é para ser celebrada de todas as formas. Nicole Maines, afinal, não é só uma atriz. Ela também é ativista da comunidade trans, dando as caras na TV em uma ponta na série Royal Pains em 2015, depois como parte do documentário da HBO The Trans List, e logo aparece nos cinemas no filme independente Bit. Entrar numa série de tanta visibilidade como Supergirl, porém, aponta para um caminho em que jovens trans podem se enxergar em papéis que não sejam ou viciados em drogas, ou prostitutas, como a TV ianque ainda os representava, invariavelmente interpretadas por homens cisgênero. "Sinto que é certo dizer que grandes poderes trazem grandes responsabilidades", disse a atriz à Variety. "Eu estou nervosa porque quero fazer da maneira certa."
O anúncio surge na esteira da polêmica acerca do filme Rub & Tug, em que Scarlett Johansson interpretaria um homem trans, Dante "Tex" Gill, que nos anos 70 foi acusado de ser um chefão do crime em Pittsburgh. A tinta mal havia secado no contrato da atriz quando ativistas da comunidade trans criticaram com veemência sua escolha, causando sua retirada do projeto. "Nosso entendimento cultural acerca das pessoas transgênero continua avançando", disse. "Eu aprendi muito com a comunidade desde que dei a primeira declaração sobre o papel e percebi o quanto fui insensível." Rub & Tug seria dirigido por Rupert Sander, que trabalhou com a atriz em A Vigilante do Amanhã. E eu digo "seria" porque, sem uma estrela do porte de Scarlett para ancorar a produção junto a investidores, é possível que a empreitada não saia da gaveta.
É justa a luta da comunidade trans em conseguir mais espaço e representatividade na arte e na cultura pop. Como reflexo da sociedade, a TV e o cinema precisam colocar em cena mais artistas que tragam uma conexão com todo o público, livre de estereótipos e escolhidos de forma orgânica. Mas é preocupante quando uma atriz é forçada a abandonar um papel, colocando em risco um projeto que daria ainda mais visibilidade às pessoas trans. É compreensível o desejo de encontrar um homem trans para protagonizar Rub & Tug. Mas cinema ainda é um negócio, e simplesmente não existe esse artista, com nome reconhecido globalmente, capaz de tirar um projeto do chão. A representatividade aos poucos ganha mais espaço, mas os dedos em riste contra a escolha de uma atriz como Scarlett só retrocede a própria luta.
Afinal, a natureza da atuação é justamente essa: ter empatia pelo personagem, encontrar sua verdade e criar uma representação em um ambiente hiper realista – mas ainda fictício. Exigir que personagens trans sejam única e exclusivamente interpretados por artistas trans parece uma forma de colocar pessoas numa caixa. E minimizar o trabalho de performers como Felicity Huffman (em Transamerica) ou Jared Leto (em Clube de Compras Dallas). O assunto, claro, é delicado, e exige que o debate seja constante. A própria Nicole Maines levantou um ponto justo sobre a celeuma envolvendo Scarlett. "Sua escolha só aumentaria os estereótipos sobre a comunidade trans", disse, sem rodeios. "Atores cisgênero não aceitam papéis assim com más intenções, mas eles não percebem o contexto de ter pessoas cisgênero interpretando personagens transgênero." Ela vai além: "Ter pessoas trans em papéis trans mostra que nossa identidade é válida, mostra que nós existimos".
Num mundo perfeito, artistas seriam artistas, não importa o papel. Uma atriz trans não deveria encontrar barreiras para interpretar uma mulher cis – e vice-versa. Mas não vivemos ainda em um mundo perfeito, e tanto a comunidade trans quanto os habitantes de Hollywood precisam, aos poucos, encontrar um ponto de equilíbrio na questão. É absurdo fechar as portas para qualquer artista por conta de sua orientação sexual ou sua identidade de gênero, assim como é igualmente absurdo decretar que um bom ator seria incapaz de abraçar empaticamente qualquer papel. No fim, a decisão sobre o melhor artista para o personagem cabe ao diretor – e é uma decisão que, muitas vezes, vai além da adequação ao papel, envolvendo números, distribuição e a própria viabilidade do projeto. Claro que existe dúzias de artistas trans capazes de assumir um papel como o protagonista controverso de Rub & Tug. Mas será difícil, a essa altura, encontrar alguém que abra portas como Scarlett Johansson.
A porta aberta por Nicole Maines é absurdamente importante justamente por causa disso. Quando o papel foi anunciado em maio, ele já apontava que a personagem, Nia Nal, seria uma mulher trans. Quando foi revelado que ela também ganharia poderes extraordinários, foi um modo de a série dizer que todos podem ser super-heróis. Dreamer não tem um "equivalente" nos quadrinhos, o mais próximo sendo a Sonhadora, membro da Legião dos Super-Heróis, capaz de predizer o futuro – sua identidade é Nura Nal, nativa do planeta Naltor. Supergirl já é uma série admirada pela comunidade trans, já que sua protagonista guarda um segredo gigante que a sufoca, mas quando revelado (em cumplicidade com o público) a transforma em uma super-heroína espetacular. Se o papel de Nicole Maines conseguir inspirar jovens trans a enxergar o futuro de forma positiva e otimista, então já é uma vitória.
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