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Por que a Disney deveria recontratar o diretor de "Guardiões da Galáxia"

Roberto Sadovski

31/07/2018 04h46

"Pare de ficar tão ofendido com tudo!" A comediante Leslie Jones, veterana do Saturday Night Live e uma das Caça-Fantasmas do reboot de 2016, não se conteve ao ser convidada para o programa The View, uma espécie de Encontro com mais tutano e humor. "Você não vai conseguir sobreviver à vida!" A indignação da atriz e humorista tinha alvo certo: a avassaladora onda conservadora, muitas vezes vinda de pessoas com orientação progressista, que recentemente fez uma devassa em tuítes e entrevistas de comediantes (e não só comediantes), escavando comentários, piadas e provocações de décadas atrás. "Eu comecei em 1986", continuou Leslie. "E ainda bem que não existiam redes sociais quando eu tinha meus 20 e poucos anos." Redes sociais são invenção moderna, e foi por elas que o diretor James Gunn viu tuítes que ele escreveu entre seis e dez anos atrás serem desenterrados por um blogueiro ultraconservador.

Os tuítes eram, claro, de péssimo gosto. Eram provocações de um autor que ainda chamava atenção pelo choque, textos que esbarravam, entre outras coisas, em pedofilia e abuso infantil. Gunn já havia falado em outras ocasiões sobre sua natureza provocadora e seu humor negro – uma espiada nos filmes do início de sua carreira, na produtora trash Troma, não deixam a menor dúvida sobre onde estava sua sensibilidade. Mas sempre ressaltou que o tempo fez dele um sujeito melhor. A Disney não contou conversa e decidiu encerrar o contrato com o cineasta, que se preparava para voltar ao Universo Cinematográfico Marvel no comando do terceiro Guardiões da Galáxia. E foi por meio das redes sociais, dez dias depois da demissão de Gunn, que o elenco dos dois primeiros filmes publicou uma carta aberta, declarando seu total apoio ao diretor, deixando claro que eles querem seu retorno ao projeto. "Ficamos chocados com sua demissão repentina semana passada e esperamos estes dez dias antes de responder para pensar, rezar, ouvir e discutir", diz o manifesto, assinado por Chris Pratt, Zoe Saldana, Bradley Cooper e o resto do elenco principal. "Nesse meio tempo, fomos encorajados pelo apoio incondicional dos fãs e de membros da mídia que gostariam de ver James recontratado como diretor de Volume 3, bem como desencorajados por aqueles levados tão facilmente a acreditar nas teorias conspiratórias absurdas em torno dele."

James Gunn e um colega de trabalho

Nesse período, a reação da Disney e da Marvel foi de silêncio total. Como eu disse em um texto anterior aqui mesmo no blog, o estúdio foi correto em não querer associar sua imagem de entretenimento para a família com piadas sobre macacos ejaculando em pré-adolescentes. Mas também ressaltei que nada se sustenta em uma interpretação literal. Muitos compararam a situação à demissão da comediante Roseanne Barr, que perdeu seu programa na rede ABC (que faz parte do grupo Disney) depois de tuítes de teor racista, e que a empresa estava apenas sendo coerente. É um erro. Um comentário explicitamente racista feito anteontem diz muito sobre o racista que o escreveu; uma piada horrorosa sobre pedofilia feita uma década atrás é de péssimo gosto, mas não faz de ninguém um pedófilo. São pesos e medidas obviamente diferentes, nivelados em um jogo em que as grandes corporações encontram-se reféns de grupos tanto conservadores como progressistas, dispostos a fazer da opinião pública um tribunal que atravessa todo o processo e vai direto à condenação.

No caso de James Gunn, é bem possível que a situação esteja sendo reavaliada nos corredores da empresa. Como o CEO da Disney, Bob Iger, encontra-se de férias, é possível que os executivos estejam aguardando seu retorno para tomar alguma decisão. É improvável, mas não impossível, que Gunn seja readmitido ao posto de diretor de Guardiões da Galáxia Vol. 3 – nem que seja por motivos financeiros. Os dois filmes renderam juntos cerca de 1,6 bilhão de dólares aos cofres do estúdio do Mickey. Mesmo que um filme seja resultado de esforço coletivo de dezenas, centenas de profissionais, é inegável que seu DNA criativo tenha sido o principal motor a diferenciar as duas aventuras de tantos outros filmes que atolam os cinemas a cada semana. Com uma data de início da produção acertada para o final deste ano, uma decisão tem de ser tomada com velocidade, até porque qualquer novo capitão neste barco teria de adequar o roteiro a seu estilo – isso se o texto de Gunn ainda estiver na equação! O apoio do elenco pode ser decisivo para uma decisão favorável ao responsável por Seres Rastejantes e Super (veja os dois, são bem bacanas!).

Selma Blair apagou seu Twitter em apoio a James Gunn

Mesmo que dinheiro seja um motivo razoável para encerrar a questão a favor de Gunn, a verdade é que a Disney puxou o gatilho cedo demais, movida a medo em meio à histeria que tomou conta do showbiz em todo o mundo – uma resposta, talvez, à guinada ultraconservadora adotada pela maior potência mundial. A melhor atitude agora seria trazer o diretor de volta e nivelar o debate em torno do bom senso, sem se render à histeria e ao clima de "caça às bruxas" que deixa artistas com forte opinião política (vale lembrar que Gunn é opositor ferrenho do presidente Donald Trump) reféns de um passado que sequer condiz com as pessoas que eles são hoje. A atriz Selma Blair, ativista pelo direito das mulheres, e uma das primeiras a contar sua história de abuso sexual quando jovem (nas mãos do diretor e produtor James Toback), tornou-se uma das primeiras vozes a defender o diretor de Guardiões da Galáxia, usando seu próprio Twitter como plataforma para seus seguidores assinarem uma petição em prol do cineasta. "Se as pessoas são punidas mesmo quando elas mudam, o que então isso nos ensina sobre aprender com os próprios erros e evoluir?", disse, antes de completar. "Este homem é um dos mocinhos." Selma encerrou sua conta no Twitter em protesto, juntando a outros artistas que deixaram a rede social após as acusações contra Gunn. O próprio Twitter do diretor encontra-se silencioso desde 20 de julho.

Arte é uma coisa complexa e fluida, algumas pessoas mudam para melhor, outras continuam com os mesmos pensamentos mesquinhos, terríveis e criminosos. Mas nem é preciso dizer que cada caso é um caso. Se as grandes corporações capitularem ante a multidão armada com facões e ancinhos depois de cada acusação, sem dar dois passos para trás e avaliar a situação, o preço a ser pago num futuro não muito distante pode ser severo com a indústria do entretenimento. Palmas, portanto, para a presidência do Netflix, que mesmo com as acusações absurdas e histéricas de "gordofobia" direcionadas à série Insaciable (que sequer estreou!!!) não recuou e manteve sua data de estreia intocada. Diretores que pendem para a ousadia, comediantes sem papas na língua, séries sem pudor em abraçar uma polêmica: pode parecer que são pólos distantes, mas cada polêmica converge a um mesmo ponto, que é a censura de ideias, a mordaça de pensamentos. Eu volto a Leslie Jones, que no mesmo The View deu a real. "O trabalho de um humorista é pegar as coisas mais horríveis e deixar tudo engraçado", cravou. "Somos bobos da corte, somos palhaços, esse é nosso trabalho…. A não ser que o pessoal queira chorar pelo resto da vida." Eu vou além: chegou a hora de a sociedade usar o bom senso antes de gritar lobo. Antes que os verdadeiros monstros usem esse momento de caos para moldar o mundo numa arena cinza.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.