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Star Trek (e o mundo) só tem a ganhar com a volta de Patrick Stewart à TV

Roberto Sadovski

06/08/2018 03h19

Por essa ninguém – ninguém!!! – esperava: Patrick Stewart vai voltar ao mundo de Star Trek numa nova série desenvolvida para a rede CBS. Por anos o ator emprestou seriedade, nobreza e complexidade ao capitão Jean-Luc Picard, provavelmente o personagem mais celebrado da série depois (e não tão longe assim) do icônico Spock. Primeiro em A Nova Geração, que recuperou o lugar de Trek na cultura pop nos anos 90 (abrindo espaço para as séries Deep Space Nine e Voyager, situadas na mesma época), depois ao fazer o salto para o cinema em quatro aventuras que, embora inconsistentes em qualidade, geraram ao menos um dos grandes filmes da série no cinema: Primeiro Contato, de 1996. O retorno de Stewart, anunciado em uma convenção de Star Trek em Las Vegas, gerou um abalo sísmico de esperança e otimismo que promete consequências reais entre entusiastas da boa ficção científica – e também no mercado pop. O mundo encontra-se em meio a uma divisão política e social brutal – e não existe ninguém mais adequado para devolver um pouco de bom senso à discussão do que Picard.

"Durante os últimos anos foi com orgulho que ouvi muitas histórias sobre como A Nova Geração trouxe conforto à muita gente em períodos difíceis de suas vidas, ou como Jean-Luc Picard foi um exemplo para tantos seguirem seus passos em busca da ciência, exploração ou liderança", escreveu Sir Patrick, notadamente emocionado, pouco depois do anúncio. "Eu sinto que estou pronto para reencontrá-lo pelos mesmos motivos, para pesquisar e experimentar essa luz de conforto e mudança que ele pode projetar nesses tempos tão sombrios." Star Trek, claro, vai muito além da ficção científica. Em todas as suas encarnações, seja na TV ou no cinema, o senso de aventura sempre emoldurou uma preocupação com a condição humana, com enxergar quem nós somos, qual nosso papel no mundo e que tipo de sociedade podemos construir juntos, longe de conceitos ultrapassados de raça, credo e poder. Star Trek sempre foi um holofote para o melhor da humanidade, e Picard surgiu como exemplo máximo, ainda que imperfeito e disposto a aprender e a crescer, de nosso melhor.

Patrick Stewart anuncia sua volta a Star Trek em Las Vegas

A volta do capitão mais carismático de toda a série (sorry, Kirk…) também aponta um caminho ousado para a série. Desde o fim de A Nova Geração, que encerrou suas viagens no cinema em 2002 com o pouco visto Nêmesis (que trazia um jovem Tom Hardy como vilão), todas as novas interpretações de Star Trek olharam para o passado. Primeiro em Enterprise, exibida entre 2001 e 2005, que trazia as aventuras de uma tripulação quase um século antes das viagens da equipe original. Discovery, exibida atualmente pela Netflix, existe entre Enterprise e a série original, aproximadamente uma década antes de Kirk assumir o comando da espaçonave. O próprio reboot promovido em 2008 por J.J. Abrams (que rendeu mais dois excelentes filmes em 2013 e 2016), de certa forma retomavam personagens conhecidos e consagrados com uma nova roupagem, mantendo o conceito de ficção científica hardcore que sempre foi sinônimo com o programa. O novo Star Trek com Picard à frente terá liberdade para ir fundo em temas (e planetas, e civilizações) que de fato nunca foram vistas em toda a história da série. É a melhor maneira de Trek "audaciosamente ir onde ninguém jamais esteve".

Outro motivo para aplaudir o retorno de Patrick Stewart é fazer com que Star Trek volte a se conectar com seu público. Fato: os fãs da série, os trekkers, podem ser os mais apaixonados do mundo geek, mas também podem ser virulentos e possessivos, agindo como se os conceitos tecidos nos anos 60 por Gene Roddenberry pertencessem exclusivamente a eles, bloqueando qualquer interpretação que, a seus olhos, escapasse do "adequado" e "canônico". As encarnações modernas de Trek são o melhor exemplo. O reboot de J.J. Abrams é uma aventura incrível, antenada com a sensibilidade da plateia do século 21, mesmo sem perder o gancho poderoso de ficção científica e exploração que permeia a série. Sua continuação, Além da Escuridão, pecou com uma campanha de marketing que privilegiou segredos que os fãs telegrafaram meses antes, mas em nada isso diminuiu sua qualidade. O terceiro destes "novos" filmes, Sem Fronteiras, é Trek raiz, mesclando todos os elementos que fazem da série um colosso. Mas nada aplacou a fúria de parte dos trekkers, furiosos com a nova direção narrativa, com o novo elenco assumindo personagens icônicos, com a continuidade bolada por Abrams. Trazer Patrick Stewart em uma nova série pode amarrar o velho e o novo sem ferir a sensibilidade dessa turma, que com certeza se sentirá estimulada com carinho ao ver um de seus favoritos de volta a este universo.

Stewart com Tom Hardy em Nêmesis, sua (então) despedida do personagem

É curioso observar que, quando A Nova Geração foi anunciada, lá na metade dos anos 80, a reação destes mesmos fãs foi igualmente violenta, já que basicamente Star Trek deixaria as mãos de Kirk, Spock e McCoy para singrar pelo espaço com uma nova tripulação. O tempo fez maravilhas, e muitos consideram A Nova Geração até mais complexa, melhor desenvolvida e com mais camadas do que a série original. O que deixa tudo ainda melhor é devolver o foco a Picard. Na interpretação de Stewart, o capitão nunca foi um aventureiro impulsivo. Era um artista, um diplomata, uma pessoa ponderada e de imensa generosidade e nobreza, preferindo sempre o caminho do diálogo do que o poder de um phaser. Nesse momento de ruptura tão aguda na sociedade, é papel fundamental da fantasia e da ficção científica entregar o protagonismo de um programa tão popular a um personagem que representa o melhor de nós, para que ele possa ser um espelho de inspiração e um respiro no cinismo e na desolação que muitas vezes – e não por acaso – dominam as séries que habitam a TV moderna. Uma vez em São Paulo, perguntaram a Patrick Stewart, que interpretou líderes tanto em Star Trek quanto em X-Men (ele foi o telepata Charles Xavier em cinco filmes da série), qual seria a melhor qualidade para alguém em comando. "Empatia", respondeu, depois de uma certa introspecção. "Quando nos colocamos no lugar de quem segue nossa liderança, e experimentamos seus medos e suas incertezas, podemos conduzir a todos para um lugar melhor." Bem-vindo de volta, Jean-Luc! Sentimos sua falta.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.