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Halloween reinventa o clássico do terror ao voltar para suas raízes

Roberto Sadovski

24/10/2018 07h20

Em Halloween, o filme que John Carpenter dirigiu em 1978 e trouxe com ele o slasher movie, um assassino mascarado aterroriza uma vizinhança insuspeita ao retalhar adolescentes em plena Noite das Bruxas. Conceito simples, execução impecável: Carpenter, com sua câmera sufocante e implacável, redefiniu o cinema de terror, redesenhou o gênero para a década seguinte de ponta a ponta, fez de Jamie Lee Curtis uma estrela e criou um dos maiores ícones do cinema moderno, o psicopata Michael Myers. Com o novo Halloween, o diretor David Gordon Green passa a borracha em quatro décadas de uma série que esbarrou num beco sem saída criativo e redescobre a essência do gênero, usando basicamente as mesmas ferramentas de seu criador.

É na simplicidade que está o segredo da longevidade de Halloween, um relâmpago capturado numa garrafa que, mesmo impossível de ser reprisado, pode ao menos ser reinterpretado, como um quebra-cabeças novamente embaralhado e remontado. Para isso, Green, ao lado dos roteiristas Danny McBride e Jeff Fradley, foi impiedoso: em um só golpe, as nove sequências que imortalizaram o assustador Michael Myers foram limadas da existência, com a trama retomada em uma nova linha temporal que ignora todo e qualquer filme com "Halloween" no título, exceto o original. O resultado é curiosamente revigorante. Sem o peso da cronologia, o novo Halloween pode finalmente seguir em frente, retomando sua temática primal sob uma nova ótica. É um filme sobre trauma, sobre culpa, sobre paranoia, pesar, loucura, obsessão e morte.

Jamie Lee Curtis vestida para matar como Laurie Strode

Quarenta anos se passaram desde os eventos da Noite das Bruxas de 1978, quando a babysitter Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) foi a única sobrevivente do massacre perpetrado pelo psicopata silencioso com a máscara branca e órbitas sem vida. Se no primeiro filme o psiquiatra Sam Loomis (o inesquecível Donald Pleasence) atira em Michael no clímax, só para descobrir que seu corpo desapareceu, a nova história faz uma correção cronológica ao atestar que Myers foi capturado e preso após ser alvejado – e permaneceu em um hospício pelas décadas seguintes, sempre em silêncio, impávido e separado do resto da humanidade por mais que grilhões. Laurie, por outro lado, vive numa prisão talvez pior. Sua vida como sobrevivente foi um desastre, e ela mora sozinha em um rancho que parece uma fortaleza, armada com um arsenal, esperando a revanche inevitável contra seu algoz. Sua filha (Judy Greer) e neta (Andi Matichak) tentam um semblante de vida normal, mas a sombra de Laurie, e a notoriedade de sua história, sempre gritam mais alto.

Quando o inevitável acontece, e Michael encontra-se mais uma vez à solta, máscara e obstinação no lugar, cabe a Laurie mostrar que sua paranoia tinha fundamento, e que ela está pronta para enfrentar o maior fantasma de seu passado, numa tentativa de reparar seu futuro. David Green usa essa linha narrativa para construir uma história envolvente sobre estresse pós-traumático, sobre como um recorte devastador precisa ser confrontado para que a vida possa mais uma vez fluir. Halloween é a chance de contar essa história com uma moldura familiar, e o cineasta conta com a melhor aliada: uma protagonista absolutamente brilhante, um dos casamentos de intérprete e personagem mais sensacionais do cinema. Jamie Lee Curtis abraçou o desafio de voltar à série mais uma vez e faz de Laurie Strode não só uma sobrevivente, mas uma lutadora igualmente implacável, que transforma a superação de seu trauma numa cruzada para ser um predador tão perigoso quanto seu caçador.

Uma vítima do toque delicado de Michael Myers

Para coroar seus temas e seu legado, Halloween em nenhum momento tenta reinventar o gênero. O novo filme o assume com a mesma simplicidade feroz da visão original de John Carpenter. Depois de quase se tornar uma piada em uma série de filmes mais e mais desidratados (Halloween II, de 1981, é a única sequência com alguma decência, e o reboot assinado por Rob Zombie em 2007 transborda estilo, mas não tem alma), Michael Myers retorna verdadeiramente assustador, uma máquina de matar implacável, ainda que marcada pelo peso da idade (seu intérprete é o mesmo Nick Castle de 1978, com o auxílio do ator e dublê James Jude Courtney. Fugindo do banho de sangue adotado pelo slasher nas mãos de Jason Voorhees, Freddy Krueger, Chucky, Ghostface e o recente Jigsaw, Halloween atém-se mais na sugestão e no resultado das ações de Michael – mesmo que não se intimide em abrir a torneira vermelha quando precisa. Não é tanto a quantidade de mortes, e sim seu impacto narrativo – além de demonstrar que Myers continua o mais implacável dos serial killers do cinema.

É curioso perceber que Halloween, mesmo sendo herdeiro de uma tradição de décadas, chega aos cinemas como um filme inovador. O cinema de terror nos últimos anos deu uma guinada para o sobrenatural, com demônios e aparições tomando a missão de incutir pavor no coração da plateia. O que é ótimo. Exemplares modernos do gênero, como Invocação do Mal e It, mostram que existe espaço para uma experiência coletiva apavorante na sala de cinema. Ao mesmo tempo, obras como A Bruxa, Hereditário, Corra! e Corrente do Mal mostram o quanto o terror ainda pode evoluir, surpreender e inovar. Halloween, entretanto, é um animal diferente. Não é uma história sobrenatural, não lida com um mundo descortinado além de nossos sentidos. Michael Myers é a encarnação suprema de temores bem reais e possíveis, a encarnação do mal, implacável, mecânica, impérvia à lógica ou razão. John Carpenter mostrou o poder devastador desse mal quarenta anos atrás, e agora vemos, estarrecidos, suas consequências. Laurie Strode, no apavorante e absolutamente sensacional Halloween, somos todos nós.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.