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Aranhaverso é, de longe, o melhor filme do Homem-Aranha nos cinemas

Roberto Sadovski

10/01/2019 04h19

Vez por outra o cinema entrega um filme pop perfeito. Guerra nas Estrelas. De Volta Para o Futuro. Jurassic Park. Filmes que se tornaram fenômenos culturais, combinando conceitos sofisticados e fantásticos com personagens que, mesmo em uma galáxia muito distante, viajando no tempo ou enfrentando as consequências da ciência sem amarras, não perdem a conexão com o que os faz tão humanos. Do lado de cá, a identificação é imediata, amplificada por tramas que misturam ação e humor, deslumbre e emoção genuína. Homem-Aranha no Aranhaverso é um filme pop perfeito.

O que não deixa de ser surpreendente, já que os super-heróis, já elevados à categoria de gênero, parecem muitas vezes ter atingido seu ápice criativo. Em um ano em que Pantera Negra foi muito além das amarras de seu próprio universo, e que Vingadores: Guerra Infinita rompeu as regras deste mesmo universo ao entregar a vitória a seu vilão, Homem-Aranha no Aranhaverso emerge como uma força criativa única, um "produto" genuinamente novo, mostrando que, além do teto visível, ainda existe limites que sequer foram arranhados. A fórmula para atingir tamanha perfeição pop não poderia ser mais simples: na dúvida, volte ao básico.

Miles Morales encara seu legado

O "básico", no caso, são os gibis da Marvel que, hoje, alimentam uma indústria gigantesca e milionária, abraçando dúzias de mídias e plataformas com seus personagens fantásticos. O cinema dialoga com linguagem própria, e poucas vezes o "dialeto" dos gibis consegue uma tradução em três dimensões. Hulk, de Ang Lee, experimentou uma edição esperta para tentar reproduzir os limites físicos dos quadrinhos em sua narrativa. Mas o cinema basicamente seguiu sendo cinema, em especial a Marvel, que criou um vocabulário próprio para fazer seu próprio universo cinematográfico. Homem-Aranha no Aranhaverso, por sua vez, joga essas regras para o espaço e se assume como um gibi em tela grande, uma página em movimento em que a arte digital encontra o lápis riscado no papel – em que os efeitos da animação digital buscam uma nova linguagem para se aproximar da explosão de cores e sombras e movimento e dinâmica de um gibi.

O resultado é o filme mais bonito e inovador que o cinema conseguiu produzir recentemente. Aranhaverso foge de um certo padrão hegemônico ditado pelo império Disney/Pixar, em que tudo, mesmo com suas particularidades, parece sair da mesma prancheta digital. É um padrão espelhado pela Illumination, pela DreamWorks e pela própria Sony Animation. Mas não aqui. Essa aventura do Homem-Aranha é diferente de tudo porque busca referências em outras mídias, na mídia original em que o herói foi criado. Tem uma pitada das máquinas gigantes de Jack Kirby, tem uma tonelada da psicodelia de Bill Sienkiewicz, tem a narrativa fluida de Jim Steranko. E tem, claro, o espírito de Stan Lee e Steve Ditko, co-criadores do herói. Tudo é executado com uma mistura inacreditável de cores e técnica, uma visão que inclui hachuras e retículas para criar tons e sombras, traços desencontrados que simulam os rabiscos de uma arte em desenvolvimento. O impacto é tão poderoso quanto a inovação de Fantasia, de 1940, ou de Akira, de 1988. Sim, é mesmo tudo isso.

Tem Homem-Aranha (e Mulher-Aranha) de todo canto!

Todo o assombro tecnológico, entretanto, seria só perfumaria se não estivesse a serviço de uma história a altura. E mesmo assim, seus criadores escolheram um caminho mais complicado – e imensamente mais satisfatório. Porque o protagonista aqui não é exatamente Peter Parker, o amigão da vizinhança que há mais de cinco décadas defende Nova York como o Homem-Aranha. A tarefa de conduzir a trama recai sobre os ombros de Miles Morales, criado em 2011 por Brian Michael Bendis e Sara Pichelli para também ser o Homem-Aranha – mais jovem, mais descolado, mas carregando o mesmo peso do mundo em suas costas. Miles é o Aranha ideal para o novo século, trazendo consigo a pitada de representatividade tão importante em diversificar o novo quadrinho ianque, mas também abrindo um mundo de possibilidades para explorar o bordão "grandes poderes trazem grandes responsabilidades".

Como o título sugere, Homem-Aranha no Aranhaverso lida não só com uma, mas com diversas realidades paralelas, cada uma com seu próprio herói aracnídeo. No mundo de Miles, ele ainda é Peter Parker, vigilante que por uma década tornou-se o herói-símbolo de Nova York. Ao enfrentar Wilson Fisk, o Rei do Crime (gigantesco, preenchendo a tela com poder e cobiça), que tenta abrir uma fenda para outras dimensões por seus propósitos egoístas, Peter perde a batalha, deixando um vácuo que é preenchido, ao acaso, quando Miles é mordido por uma aranha modificada geneticamente e se vê com poderes aracnídeos. Ao tentar entender seu lugar nessa cadeia de acontecimentos, ao mesmo tempo em que lida com o inferno particular chamado adolescência (seu pai é rígido e superprotetor, ele foi transferido para um colégio que detesta, seu único confidente é o tio amigão e misterioso), Miles precisa superar seus medos para honrar o legado do herói tombado. Para lhe ajudar, surge o aliado mais improvável: Peter Parker, o Homem-Aranha.

Agora, imagina isso aí animado em tela grande!

Mas este é outro Peter, de uma dimensão mais parecida com a "nossa", trazido ao mundo de Miles pelas maquinações de Fisk. Ele também é um herói mais velho e calejado, que casou e se divorciou de Mary Jane, levemente fora de forma, que acredita num mundo em que, se chovesse rosas, por sua cabeça cairia esterco. Ele entende o dilema de Miles e se coloca como mentor relutante, cansado da batalha irrefreável contra o mal, um pouco mais cínico e sarcástico. Quando outros refugiados dimensionais entram na história – Peni Parker, uma adolescente com um robô-aranha desenhada como um mangá, o Porco-Aranha que parece ter saído de um cartum do Pernalonga, o violento Homem-Aranha noir e, principalmente, Gwen Stacy, a Mulher-Aranha –, Aranhaverso abraça seu legado de história em quadrinhos para se tornar um crossover épico.

Para o fã de gibis, a coisa toda é um deleite, com referências e piadas e personagens e situações que só um leitor voraz poderia captar. Para o resto do mundo, entretanto, Homem-Aranha no Aranhaverso funciona como uma máquina bem azeitada. Tudo embalado com o espírito bem humorado e auto depreciativo tão conectado ao personagem e tão bem traduzido pelos diretores Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman. Seu trabalho, ousado e moderno, só foi possível graças à blindagem dos produtores Chris Miller e Phil Lord (co-autor do roteiro com Rothman), que tinha uma regra básica: se acharem que alguma idéia é maluca, deixe-a ainda mais insana (e pensar que eles foram demitidos da direção de Han Solo: Uma História Star Wars). O conceito de universos paralelos não se perde em verborragia sem fim, e é explicado não só ao longo da trama, como usa de (bingo!) histórias em quadrinhos para deixar tudo mais claro. O roteiro tem uma fluidez invejável, sempre em movimento, sempre surpreendente. Os personagens tem motivações claras e fáceis de compreender. O clímax é uma explosão de psicodelia e criatividade e luz e som que amarra Homem-Aranha no Aranhaverso como o melhor filme do herói no cinema. Um filme-evento com coração que, sem a menor dúvida, deixaria Lee e Ditko sorrindo.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.