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Vidro fecha com eficiência a trilogia de super-heróis de M. Night Shyamalan

Roberto Sadovski

17/01/2019 06h36

Um pesado anel de casamento rola pelo assoalho de madeira. Bruce Willis percebe, finalmente, que era uma das "pessoas mortas" interagindo com o pequeno sensitivo Haley Joel Osment. A surpresa deixou o queixo coletivo de plateias do mundo inteiro no chão e transformou o diretor de O Sexto Sentido, o então desconhecido M. Night Shyamalan, no cineasta mais requisitado da Hollywood da virada do milênio. O suspense sobrenatural tornou-se uma das grandes bilheterias do cinema – mas também marcou a carreira de seu realizador, que nas duas décadas seguintes buscou um novo momento de catarse como o clímax de seu filme-assinatura. Ele repetiu a excelência em Corpo Fechado, Sinais e em A Vila, mas começou a perder a mão e A Dama na Água e se tornou um diretor estranho e confuso, perdendo a confiança do público com os terríveis Fim dos Tempos, O Último Mestre do Ar e Depois da Terra. Era o fim de um dos talentos mais impressionantes do cinema em muito tempo.

Assim como seus filmes, entretanto, Night alcançou a reviravolta em seu roteiro pessoal. A Visita, barato e eficiente, foi um respiro. Mas aquela fagulha da surpresa capaz de roubar o ar do público finalmente reapareceu, ainda timidamente, nos créditos do ótimo Fragmentado, de 2016, com James McAvoy no papel de um psicopata com múltiplas personalidades. A surpresa, depois de um thriller tenso que culminou com o personagem de McAvoy abraçando uma personalidade sobre humana, foi mostrar Bruce Willis como seu personagem de Corpo Fechado, ligando o novo filme no mesmo universo do clássico cult de 2000. Em uma só tacada, Shyamalan voltou a surpreender seu público e, pela primeira vez, sugeriu que as histórias conectadas seriam amarradas na conclusão da trilogia, batizada Vidro. A pergunta passou a ser, será que o diretor recuperou a boa forma ou Fragmentado foi um feliz acidente de percurso?

GLASS..Mr. Glass (Samuel L. Jackson)..Photo: Film Frame..©Universal Pictures

Samuel L. Jackson como o gênio do crime, Sr. Vidro

A resposta é tão complexa quanto as várias camadas narrativas de Vidro. Vale, portanto, voltar um pouco no tempo. Shyamalan foi um cineasta verdadeiramente visionário ao fazer Corpo Fechado, um filme que se revelava sobre heróis e vilões superpoderosos, como numa história em quadrinhos, em uma época que atrelar gibis a cinema era venenoso. Duas décadas depois, os personagens coloridos das páginas das HQs basicamente comandam o entretenimento pop moderno, o que abriu espaço para o thriller com Bruce Willis e Samuel L. Jackson tornar-se um dos favoritos do "gênero". Com Fragmentado, uma nova geração descobriu o filme, e a demanda do cinema moderno por "universos compartilhados" conduziu os dedos do diretor em um novo roteiro. Mas Shyamalan nunca teve interesse em batalhas épicas entre personagens maiores do que a vida. Vidro, portanto, serviria não só como o fim dessa história em particular, e do arco dramático de seus três protagonistas, mas também como um comentário preciso e elegante sobre o papel das histórias em quadrinhos em desenhar uma mitologia moderna sobre heróis e vilões na cultura pop contemporânea.

Se existe um pecado em Vidro, porém, é pegar um público mais calejado com as "convenções" desse tipo particular de narrativa, o que pode não só diminuir seu impacto mas também frustrar quem busca uma história redondinha sobre a batalha eterna do bem contra o mal. Se tem uma coisa que aprendemos com Shyamalan, para o bem e para o mal, é que ele nunca vai entregar o que a plateia espera – e é justamente aí que reside a força de seu cinema. Em seu primeiro ato, ele é habilidoso em reapresentar velhos conhecidos, atrelando sua história à de novos jogadores. Logo descobrimos que David Dunn (Bruce Willis) passou os últimos anos como um vigilante misterioso, patrulhando as ruas da Filadélfia com a ajuda de seu filho, Joseph (Spencer Treat Clark). Acompanhando as notícias da busca por Kevin Wendell Crumb (James McAvoy), chamado pela imprensa de "A Horda" por suas múltiplas personalidades, Dunn parte em busca do assassino, que promete um novo banho de sangue. Nessa primeira parte, Night demonstra maturidade como realizador, não só mais seguro em cenas de ação, mas também como contador de histórias, costurando a narrativa de dois filmes em seu próprios Frankenstein.

GLASS..The Beast (James McAvoy)..Photo: Film Frame..©Universal Pictures

James McAvoy entrega-se, mais uma vez, à Fera

Mas logo o diretor dá uma guinada, confinando Dunn e Crumb a um hospital psiquiátrico, em que eles serão tratados pela doutora Ellie Staple, que tem um trabalho que só poderia existir em filmes: ela é especialista em pessoas com delírios de grandeza que as faz acreditar ter super poderes. Para Ellie, a condição dos agora antagonistas nada tem de sobre humano, mas seria causada por uma série de eventos traumáticos, física e emocionalmente. Ela dirige suas palavras também a um catatônico Elijah Price (Samuel L. Jackson), que em Corpo Fechado arquitetou a morte de centenas de pessoas unicamente para achar o Ying e seu Yang: como Elijah sofre de uma condição rara que deixa seus ossos frágeis como vidro, ele acredita ser o oposto de Dunn, um homem indestrutível (ou "inquebrável") de força sobre-humana. Nesse cenário, Kevin e sua dúzia de personalidades seria um outro arquétipo dos quadrinhos, a fera sobrenatural, imbatível e imprevisível.

Partindo dessa premissa, Vidro é muito esperto ao ir ainda mais fundo nos arquétipos das histórias em quadrinhos, agora não só mais integradas à narrativa, mas explicitamente citadas, com Night contando com a bagagem acumulada pela plateia em mais de uma década de exposição maciça a seres fantásticos e superpoderosos no cinema. A trama é centrada em Kevin e em como sua jornada validaria as convicções de Elijah – Bruce Willis pode estar presente de ponta a ponta, mas ocupa um lugar secundário na narrativa. Mesmo num mundo em que "filmes de super-heróis" reinam supremo, Vidro ainda é um trabalho com a assinatura de M. Night Shyamalan – e traz seus vícios e virtudes. A direção é engenhosa, com o enquadramento muitas vezes reproduzindo a narrativa sequencial de uma HQ. Ele também não foge de longos diálogos, substituindo muitas vezes a ação física por combates cerebrais – em sua maioria conduzidos com firmeza por Sarah Paulson. Já o terceiro ato, como em seus filmes anteriores, ameaça desabar sob seu próprio peso – o que não acontece por pouco, com o roteiro fazendo uma bela ginástica para manter amarrados os elementos de três filmes. Shyamalan chega a usar cenas deletadas de Corpo Fechado para fazer a costura parecer menos perceptível.

M. Night Shyamalan dirige Bruce Willis como David Dunn

Vidro é, por fim, uma anomalia. Ao contrário de Corpo Fechado, ele chega na hora certa, no auge da popularidade dos heróis dos quadrinhos no cinema e pode abraçar sem medo suas origens de papel, com toda a carga fantástica e absurda que ele traz. Por outro lado, não é um épico em grande escala: é uma produção pequena, menos preocupada em se posicionar como um filme de ação e mais focado na exploração da mitologia do super-herói moderno. É surpreendente dentro de seus parâmetros, eficiente em sua arquitetura, por vezes dolorosamente óbvio, mas em nenhum momento desinteressante. Seu maior triunfo talvez seja disparar a faísca para reacender a paixão de M. Night Shyamalan…. não exatamente a paixão, mas sua confiança para, quem sabe, reproduzir um dia a catarse de vinte anos atrás com o garoto que enxergava gente morta.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.