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Novo filme com Liam Neeson é adiado e quem perde é você!

Roberto Sadovski

12/02/2019 20h16

Liam Neeson não é racista. Mas isso pouco importa. Seu novo filme, Vingança a Sangue-Frio, previsto para estrear ainda em fevereiro, teve seu lançamento postergado. Um dos motivos alegados pelo distribuidor foi justamente uma entrevista concedida pelo ator ao jornal inglês The Independent em que ele lembra que, mais de quatro décadas atrás, saiu às ruas com uma barra de ferro em mãos dominado pela vontade de matar um homem negro. O papo girava em torno das motivações de seu personagem, um homem comum que parte em busca de vingança após o assassinato do filho. Neeson falou sobre a fúria primal quando algum membro da família é ferido em circunstâncias criminosas. "Vou te contar uma história", disse. Contou. E os dedos nos teclados em todo o mundo não perdoaram.

A história foi o estupro sofrido por uma amiga. Neeson se viu tomado pela fúria. Perguntou como era o estuprador, e  ela disse que havia sido um homem negro. Revoltado, ele passou então um par de semanas à espreita, andando pelas ruas esperando que algum homem negro, na saída dos pubs, o provocasse. "Eu o mataria", confessou. O ator Tom Bateman, a seu lado durante a mesma entrevista, deixou escapar um "Puta merda". E Neeson confessou sua vergonha e seu próprio espanto ao admitir tal ato, anos depois, justamente para um jornalista. "Cresci num lugar violento, em um clima violento", continuou. "Hoje eu entendo que vingança só atrai mais vingança, violência só traz mais violência, e a Irlanda do Norte é o retrato disso." O próprio jornalista que o entrevistou hesitou em sua reação: "É possível ouvir essas palavras em bom som e não julgar?". Pela reação imediata, muita gente decidiu que não.

Liam Neeson e a arte de desovar um cadáver

O que se seguiu foi a avalanche já esperada em tempos modernos. Neeson foi rotulado como racista, ponto final. Mesmo quando, dias depois, ele repetiu em um programa de notícias da rede ABC que não era racista, que entendia o pensamento horrível que um dia lhe foi acometido, e que sabe que teria a mesma reação se sua amiga tivesse dito que o estuprador era "irlandês, escocês, britânico ou lituano", a "campanha" online já estava em curso. Muitos pediram boicote a seus filmes. Um grupo está exigindo que os produtores de Homens de Preto Internacional, que chega aos cinemas no meio da disputada temporada do verão americano, apaguem o ator digitalmente do material. Total falta de noção. Neeson, que na época viu a fúria finalmente acalmar e não agrediu ninguém, eventualmente procurou um sacerdote para falar sobre o incidente e passou a entender o erro de sua reação. Virou as costas para a violência de sua terra natal e construiu uma carreira sólida nos palcos e no cinema. Reinventou-se como astro de ação em Busca Implacável. Agora, ao menos por aqui e por enquanto, ele está no estaleiro.

O que é uma pena, já que Vingança a Sangue Frio é um ótimo filme, um drama de ação que segue o caminho inverso do que seu título sugere. Refilmagem de O Cidadão do Ano, executada aqui pelo mesmo diretor, o norueguês Hans Peter Moland, o filme substitui a injeção de adrenalina do cinemão moderno por um senso de humor mordaz, emoldurado por violência e sangue. Neeson é Nels Coxman, que dirige um removedor de neve em uma pequena cidade na região das montanhas rochosas no noroeste dos Estados Unidos. Seu filho é morto por traficantes de drogas e Coxman vê seu mundo perfeito ruir: confrontado com o suicídio ou a vingança, ele escolhe a segunda opção. Aos poucos vai "apagando" os responsáveis e subindo pela cadeia alimentar do tráfico, eventualmente envolvendo seu irmão, que já trabalhou para um chefão do crime, uma policial idealista, um assassino de aluguel e os nativos de uma reserva, que enriqueceram ao abraçar o crime organizado e ao ceder suas terras para um resort de esqui. Vingança a Sangue Frio é, por fim, uma história de como o gatilho para a violência disparado em um homem comum termina por chacoalhar a estrutura social de uma comunidade inteira. Ah, e é melhor que o original, lançado em 2014 com Stellan Skarsgård no papel principal.

O ator é dirigido por Hans Peter Moland, que refilmou sua própria obra

As palavras de Liam Neeson e suas consequências são reflexo dos tempos atuais na cultura pop, em que as patrulhas, para o bem e para o mal, estão vigilantes. A armadilha fácil aqui é colocar todos os casos no mesmo balaio e encarar qualquer um que confesse algum pecado como vilão. O diretor James Gunn foi dispensado pela Disney durante os preparativos para iniciar a produção de Guardiões da Galáxia Vol. 3 depois que um blogueiro de extrema direita, incomodado com as declarações bem públicas de Gunn contra o presidente Donald Trump, desenterrou tuítes em que, mais de uma década antes, o cineasta abordava com humor duvidoso temas como estupro e pedofilia. Textos pelos quais Gunn já havia se pronunciado em 2012, falando que era um artista diferente e que buscava provocar e incomodar com sua arte de outra forma. Já o ator Kevin Spacey enfrenta processos criminais de abuso sexual e deve ir a julgamento: ele cometeu um crime e é por ele que está pagando.

Temas delicados como o racismo inflamam, com razão, a opinião pública. É responsabilidade de pessoas públicas arcas com a consequência de seus atos. No caso de Liam Neeson, porém, é preciso uma ginástica moral caprichada para encarar o caso como racismo. Impulsionado por seu personagem, centro da entrevista em primeiro lugar, ele abriu sua própria ferida e confessou um pensamento inominável, buscando o diálogo para entender os mecanismos que despertaram sua fúria em primeiro lugar, e como ele passou as quatro décadas seguintes buscando ser uma pessoa melhor – como é atestado por vários companheiros de ofício que logo insurgiram a seu favor (o que não aconteceu com Kevin Spacey, por exemplo). É também compreensível que o distribuidor opte por não embarcar na polêmica: cinema ainda é um negócio, afinal. Recentemente o filme Boy Erased foi retirado da programação da Universal (assim como outros títulos que fracassaram nas bilheterias americanas e não tiveram nenhuma tração na temporada de premiações), e o estúdio foi acusado absurdamente e desonestamente de censura! Eu adoraria conversar com Liam Neeson sobre a violência e como a arte surge como uma válvula de espape, sobre as acusações de racismo e, claro, sobre Vingança a Sangue Frio. Mas minha entrevista já agendada com ele foi, compreensivelmente, cancelada. Não é censura. Não é uma cortina de fumaça. Neste começo de 2019, é apenas reflexo do estado das coisas.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.