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Escapismo puro, Alita é a visão empolgante de um futuro que já vimos antes

Roberto Sadovski

14/02/2019 07h14

A ficção científica Alita: Anjo de Combate chegou atrasada em sua própria festa. Quando James Cameron inicialmente planejou a adaptação do mangá de Yukito Kishiro, pouco mais de quinze anos atrás, o conceito era inovador, mas a tecnologia para executar sua visão ainda engatinhava. Tivesse prosseguido com seu plano, o diretor com certeza teria derrubado algumas barreiras culturais e tecnológicas, levando para o ocidente uma história tão assumidamente nipônica, ao mesmo tempo em que daria saltos com a caixinha de brinquedos para criar mundos cinematográficos fantásticos. Mas Avatar aconteceu, a mente de Cameron se mudou para Pandora e Alita parecia destinado ao esquecimento. Quando o diretor Robert Rodriguez entrou em cena, o projeto saiu da gaveta e seu idealizador contentou-se com o papel de navegador no banco de passageiros. O resultado é um híbrido de ideias e estilos, deliciosamente anacrônico, plasticamente irretocável… e irremediavelmente envelhecido.

Nada, claro, que o desabone: este Anjo de Combate é uma ficção científica sólida, que triunfa tanto na construção de um futuro distópico intrincado e pulsante quanto na criação de uma heroína alinhada com o espírito do tempo. O problema não é de forma alguma o filme em si, mas o hiato que ele atravessou entre ideia e realização. Tivesse saído da gaveta quando Cameron se apaixonou pela história, seria uma aventura diferente de tudo que o cinema então oferecia. No alvorecer da "era dos super-heróis", uma ciborgue adolescente em uma jornada de auto conhecimento estaria à frente do tipo de história que hoje forma a espinha dorsal da cultura pop. Mas quinze anos é uma eternidade em uma indústria sempre em busca da novidade da semana, e hoje a história de Alita espelha uma dúzia de outras "origens" que o público se acostumou a ver, continuamente, na TV e no cinema. É um filme lindo que soa exageradamente familiar. A impressão de a gente já ter acompanhado aquela mesma história é inevitável.

Alita (Rosa Salazar) e seu "pai", o Dr. Dyson Ito (Christoph Waltz)

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O que não é exatamente uma surpresa. Embora Robert Rodriguez seja de fato o diretor, Alita: Anjo de Combate é de ponta a ponta uma criação de James Cameron. E não o Cameron cerebral e preciso de O Exterminador do Futuro ou Aliens, e sim o realizador que amoleceu o coração em Titanic antes de embarcar no sentimentalismo de Avatar. Alita trilha caminho semelhante, com uma narrativa emocional um tanto batida amarrada pelas sequências de ação mais empolgantes que o dinheiro e a tecnologia conseguem arquitetar. É como se as ideias existenciais que atraíram Cameron em primeiro lugar descansassem sempre que Rodriguez toma o volante para esquentar a temperatura. É uma mistura de estilos e personalidade que ameaça ruir sob o próprio peso, mas que de alguma forma consegue ser traduzida em uma ficção científica empolgante que é a cara do gênero nos anos 90, com suas cidadelas construídas sob as ruínas de civilizações há muito esquecidas, embalada por tecnologias que parecem feias, velhas e sujas e um "fantasma da máquina" que surge como o escolhido para mudar o futuro. É Blade Runner. É Akira. É Ghost in the Shell. É Matrix. É Jogador Nº 1. É como rever um velho amigo. E é muito divertido!

Seu maior triunfo é a criação da própria Alita, ciborgue encontrada entre a sucata de um lixão pelo Dr. Dyson Ito (Christoph Waltz). Ele dá ao organismo cibernético, de chassi mecânico e cérebro humano, o corpo criado para sua própria filha, há muito vitimada por uma tragédia. Alita acorda sem memória de quem é ou de onde veio, e aos poucos vai se aclimatando à sua nova vida, ao mesmo tempo em que recupera fragmentos de seu passado, identidade e propósito – que pode estar relacionado com a grande guerra que a humanidade enfrentou contra invasores alienígenas séculos atrás. É ficção científica hardcore, bem ao gosto de Cameron. A própria Alita é uma criação tecnológica soberba, executada com a interpretação ao mesmo tempo doce e brutal de Rosa Salazar, que filmou com um traje de captura de performance e viu seus gestos e expressões reconstruídos em um avatar digital. Curiosamente, a birra inicial de alguns fãs, a decisão em lhe dar um par de olhos levemente maiores que o normal – para mimetizar seu design original no mangá – termina como uma vitória: se os olhos são o espelho da alma, os seus lhe conferem uma humanidade inusitada justamente ao surgir como seu atributo menos humano.

Robert Rodriguez dirige Keean Johnson e Rosa Salazar

Pena que o resto do filme siga uma cartilha de pontos narrativos manjados – que o filme surja empolgante, divertido e até emocionante é testamento ao enorme talento envolvido em sua realização. Ainda assim, são tantas ideias que as duas horas de projeção se tornam insuficientes para resolver todas as ramificações da trama. Temos o mistério em torno das verdadeiras intenções de Ito, que se atropela à jornada para voltar à elite de Chiren (Jennifer Connelly). Temos as maquinações de Vector (Mahershala Ali), que usa um esporte violento para cumprir as ordens de seu chefe, o onipresente Nova (uma ponta surpresa que eu não vou estragar). Temos os ciborgues, tanto assassinos quanto caçadores, dezenas espalhados pela trama que logo se tornam desinteressantes. E temos Alita que, ao mesmo tempo que busca respostas para o mistério que ela mesma representa, engata um romance teen com Hugo (Keean Johnson), o próprio estereótipo do bad boy. Estivesse nas mãos de James Cameron na virada do milênio, Alita: Anjo de Combate seria um épico inesquecível de ficção científica, um filme destinado a mudar o rumo do cinema pop com o diretor brigando com o estúdio para lançar uma versão de três horas. O alento é que Robert Rodriguez, em meio ao oceano de seres superpoderosos que hoje lotam o cinema, consegue harmonizar tantos elementos em uma aventura digna, uma adaptação de mangá que merece respeito e que triunfa em sua maior ambição: a de ser puro escapismo.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.