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Devastador, Deixando Neverland revela o legado de abusos de Michael Jackson

Roberto Sadovski

15/03/2019 02h53

Michael Jackson foi o maior astro de toda história da música pop. Sua influência e seu legado são indiscutíveis. Por cinco décadas, ele esteve ininterruptamente sob os holofotes, até seu caminho ser encerrado com a tragédia que o matou uma década atrás. O homem por trás da cortina, porém, era uma pessoa perturbada, danificado por uma infância de abuso psicológico, que escondia suas inseguranças por trás de uma parede de controvérsia, de relacionamentos duvidosos e de um comportamento, no mínimo, questionável. Bilionário, Jackson era excêntrico. E sua posição de poder e privilégio, em um planeta envolto pelo culto à celebridades, lhe dava poder quase ilimitado para reinar supremo em seu próprio mundo. Deixando Neverland, documentário de quatro horas que a HBO exibe em duas partes nos dias 16 e 17 de março, desconstrói parte do que movia o homem por trás do astro. Mas o filme de Dan Reed, é bom deixar claro, não é sobre Michael Jackson.

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Wade Robson tinha 5 anos quando conheceu Jackson ao participar de um concurso de dança em sua Austrália natal. Dois anos depois, ele, sua mãe e irmã foram aos Estados Unidos e foram convidados pelo cantor para se hospedar em sua casa, o Rancho Neverland. Jimmy Safechuck tinha 9 anos quando participou de um comercial da Pepsi com Michael. A conexão ficou mais forte quando James acompanhou Michael em sua turnê, e o cantor passou a frequentar a casa da família. Wade alega que foi abusado sexualmente por Michael dos 7 aos 14 anos. Jimmy admite a mesma acusação entre 1988 e 1992. Eles não se conhecem pessoalmente, mas seus relatos paralelos trazem coincidências assustadoras, não só da geografia do rancho e do modus operandi do cantor, mas batem também em relação a práticas sexuais e na maneira como eles foram seduzidos e, depois, trocados por meninos mais jovens no círculo interno do astro.

Michael recebe Wade Robson em sua primeira viagem aos Estados Unidos

Dan Reed assume a posição de ouvinte, conduzindo sua câmera como testemunha passiva à medida em que os dois homens abrem memórias até então ocultas, sem nunca acelerar o ritmo, lentamente cedendo ao peso de eventos que basicamente destroçaram duas famílias. Curiosamente, Deixando Neverland nunca assume um tom acusatório e nem busca desconstruir a figura de Michael Jackson. O filme concentra-se unicamente no retrato de dois adultos que sofreram abusos quando crianças e, hoje, tentam lidar com as consequências. Até porque não foram poucas. Robson e Safechuck foram fundamentais para inocentar Jackson na primeira vez em que o astro foi acusado de abusar sexualmente um garoto – o caso, ocorrido em 1993, terminou com uma indenização de 23 milhões de dólares para a família do menino. Wade, que cresceu para se tornar coreógrafo, trabalhando com Britney Spears e com o grupo N Sync, voltou aos holofotes em 2004, na segunda vez em que Michael teve de ir a um tribunal se defender em um caso de abuso infantil, e repetiu que nunca havia sido tocado pelo astro. Em 2013 ele foi a público e reverteu seu testemunho, admitindo a relação com Michael. Jimmy, por sua vez, abandonou a vida artística ainda adolescente, e só conseguiu lidar com seu trauma quando ele mesmo se tornou pai.

Detratores, claro, dizem que tudo não passa de uma mentira, que ambos querem dinheiro e fama – mesmo não recebendo nenhuma compensação financeira por conta do projeto. O filme de Reed, por sinal, só fracassa como documentário ao não ouvir "o outro lado", deixando de fora depoimentos de advogados e promotores envolvidos nos dois casos em que Jackson foi acusado, ou de membros de sua família – uma sobrinha do cantor recentemente foi a público dizer que namorou com Robson por seis anos, o que não é mencionado no filme, e que tudo é uma campanha para manchar o legado do astro. Deixando Neverland, entretanto, usa o tempo e o distanciamento a seu favor ao não perder o foco, que sempre foi mirar as câmeras para dois sobreviventes de abuso sexual infantil. Ao abandonar as convenções formais do que seria um documentário, o filme torna-se catártico, utilizando a postura atual da sociedade para questionar e denunciar casos de abuso e agressão sexual, em especial perpetrados por celebridades, para fazer as perguntas que uma, duas décadas atrás seriam impronunciáveis.

Wade Robson e Jimmy Safechuck cercam o diretor Dan Reed no lançamento do filme no Festival de Sundance

E é inegável o impacto devastador das quatro horas de Deixando Neverland. Se você é fã de Michael Jackson, daqueles que derreteu-se em lágrimas com sua morte, é melhor passar longe do programa: ele não deixa absolutamente nenhuma dúvida sobre a culpa de Jackson, seus métodos para seduzir e cercar-se de meninos pré-adolescentes e o abuso contínuo dos dois protagonistas. As evidências são estarrecedoras – cartas, faxes, conversas telefônicas de horas, presentes caríssimos, os detalhes iguais no relato de duas pessoas que nunca trocaram uma palavra. Mais chocante ainda é a posição dos pais: tanto a mãe de Safechuck quanto de Robson, que não mantém mais contato com os filhos, tem voz no documentário: elas podem ter relutado a princípio, mas depois não acharam nada de errado em deixar um homem adulto, de 30, 40 anos, dividir a cama com seus. Podemos até nos perguntar como foi possível. Deixando Neverland, porém, não esconde o fascínio de pessoas comuns em ter amizade com Michael Jackson, que era praticamente o Rei do Mundo. E como dizer não a alguém acostumado a ter tudo, regado a tanto dinheiro e tanto poder? Jackson era "excêntrico", era "uma criança", ele só queria "brincar e ver filmes", era "como se fosse um filho". A irmã de Jackson, LaToya, passou anos em pé de guerra com a família quando, ainda nos anos 90, disse com todas as letras que seu irmão era pedófilo: "Esqueçam o astro, esqueçam o ícone. Se ele fosse qualquer outro sujeito com 35 anos que estivesse dormindo com garotinhos, você não gostaria dele".

É curioso, por fim, observar o amor que tanto Wade Robson quanto Jimmy Safechuck sentiam – e ainda sentem! – por Michael Jackson. "Eu me sinto culpado, e sinto que o decepcionei", disse Safechuck à apresentadora Oprah Winfrey, em uma entrevista realizada ao lado de Robson e de Dan Reed após a exibição do documentário na HBO americana. "Eu ainda carrego essa sombra, essa culpa." Eles hoje tem consciência de que este homem lhes roubou a infância, e ainda assim buscam medir as palavras na hora de julgá-lo. Afinal, aos 7 ou aos 9 anos, sexo ainda é um mistério que a vida revela no momento certo. Encantados pela proximidade com o astro, como duas crianças poderiam entender o que realmente estava acontecendo? Quando eles falam sobre o momento em que foram "substituídos", é palpável a reação, uma mistura de desilusão e ciúmes, como se tivessem sido traídos pelo amor de sua vida – o que, de certa forma, foi o que aconteceu. E é isso que eles são: vítimas, finalmente contando sua história, sem freios. Até porque, a essa altura, Michael não pode mais sofrer as consequências de seus atos. Deixando Neverland é, por fim, um relato brutal das consequências do abuso sexual ao mostrar que a verdade, desfraldada mesmo anos e anos depois, ainda pode ser monstruosa. É um filme necessário – especialmente nos dias de hoje, em que predadores continuam no alto de seu púlpito. Mas em nenhum momento é uma experiência fácil.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.