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Liam Neeson: "Com filmes violentos a plateia experimenta justiça primitiva"

Roberto Sadovski

19/03/2019 19h48

 

Meu papo com Liam Neeson estava marcado para o dia da estreia de Vingança a Sangue Frio nos Estados Unidos, algumas semanas atrás. Um dia antes, o ator se viu em meio à uma polêmica descabida. Depois de uma entrevista a um jornal inglês, que abordou entre outras coisas o gatilho que faz um homem comum ser capaz de matar outra pessoa, Neeson lembrou uma história de sua juventude, que envolveu o estupro de uma amiga e uma jornada noturna em duas semanas para encontrar o criminoso. A única pista? Havia sido um homem negro. "Entrava em bares atrás de confusão, esperando que algum negro mexesse comigo para arrebentar sua cabeça", lembrou o ator. Não deu outra: Neeson foi rotulado racista. A internet (claro) fez o que faz melhor, que é jogar gasolina em uma fagulha. E minha entrevista foi para o espaço.

Exatamente por isso foi com surpresa que atendi ao telefone há alguns dias para encontrar o ator do outro lado da linha. Tranquilo e bem humorado, Neeson não parecia abalado com a polêmica levantada em torno de seu nome – e nem deveria! Aos 66 anos, o astro de A Lista de Schindler e Star Wars: A Ameaça Fantasma construiu uma carreira sólida depois de sua juventude nas ruas inflamadas de Belfast, na Irlanda, e sabe como palavras hoje são pinceladas para criar um quadro negativo de qualquer pessoa pública. O lado ruim do imbróglio foi tirar a atenção de Vingança a Sangue Frio, um ótimo western contemporâneo ambientado em meio às montanhas geladas do Colorado, em que o operador de um removedor de neve (Neeson) busca vingança (duh) quando seu filho é assassinado por um cartel de drogas. No papo a seguir, o ator falou sobre o filme, sua posição sobre a violência inerente a cada ser humano, o papel da arte e, claro, sobre… Simplesmente Amor!

A BELEZA DE VINGANÇA A SANGUE FRIO

Liam Neeson ficou fascinado com a ideia de traduzir o thriller norueguês O Cidadão do Ano para o inverno do norte dos Estados Unidos. "O filme original trazia um elenco europeu soberbo, com Stellan Sgarsgaard à frente", conta. "O produtor Michael Shamberg me procurou com a ideia de protagonizar uma versão americanizada, que me deixou ainda mais intrigado por ser com o mesmo diretor, Hans Petter Moland. Adorei o senso de humor malicioso e o uso de nativos americanos em uma posição de poder, diferente dos estereótipos que o cinema costumava adotar." Embora ambientado no Colorado, Vingança a Sangue Frio foi rodado em Alberta, no Canadá, onde o frio tornou-se personagem da trama. "Algumas cenas, especialmente com Laura Dern, no funeral, eram emolduradas por aquelas montanhas majestosas, impossível não se impressionar com a escala", descreve Neeson. "E o clima era temperamental, podia mudar em um piscar de olhos, o que deixava tudo ainda mais dramático. E não havia efeitos digitais, o que está no filme é o que experimentamos lá!"

VIOLÊNCIA COMO VÁLVULA DE ESCAPE

In TAKEN, Liam Neeson stars as Bryan Mills, an ex-government operative who has less than four days to find his kidnapped daughter Ð who has been taken on her first day of vacation in Paris.

A discussão sobre a influência na vida real da violência encontrada na arte possui um ponto importantíssimo para Neeson: dar à plateia uma válvula de escape. "Estar em um cinema, cercado de estranhos, faz com que a gente mergulhe profundamente na história ao assistir a filmes violentos", explica o ator. "Quando a história é desenvolvida, conseguimos com empatia viver os dilemas dos protagonistas, e enxergamos algo comum a todos nós." Neeson ressalta que sua persona cinematográfica recente, disparada depois que ele fez o filme de ação Busca Implacável, ajuda a construir esse sentimento. "Filmes violentos dão a chance de a platéia experimentar esse tipo de justiça mais primitiva", continua. "É uma mistura de emoções como vingança, amor ou ódio, e arrisco que quase 100 por cento do público deixa a sessão com uma sensação de satisfação. Está em nosso DNA, a arte é uma maneira emocional de obter esse alívio."

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CONSTRUIR PERSONAGENS DA VIDA REAL

Vingança a Sangue Frio é uma ficção, e o personagem de Liam Neeson, Nels Coxman, é uma construção em torno da qual é erguida a narrativa. Mas o ator ganhou fama no começo dos anos 90 ao interpretar o empresário alemão Oskar Schindler em A Lista de Schindler, de Steven Speilberg – uma das muitas personalidades que ele terminou emprestando sua fachada no cinema. "Tudo começa com o roteiro, não importa se o personagem viveu ou não", explica. "Mas, claro, eu já interpretei várias pessoas que já caminharam nessa terra, então existem diversos registros sobre quem eles eram e o que fizeram." Neeson conta que conversou com pessoas que eram próximas a Schindler, assim como terminou frequentando os mesmos círculos de companheiros de Michael Collins, revolucionário irlandês biografado no filme de Neil Jordan. "Muitas vezes essas pessoas são cercadas de controvérsias, então a pesquisa existe para que os roteiristas construam uma versão fictícia precisa", continua. "Michael Collins, por exemplo, é considerado por muitos o criador do terrorismo moderno, era o tipo de atividade que ele exercia! E ninguém falava muito sobre Alfred Kinsey, já que sexo continua sendo tabu. O objetivo então é retratar essas pessoas com a maior exatidão possível, mas tudo sempre volta ao roteiro." Para o ator, A Lista de Schindler é o melhor exemplo: "Spielberg e Steven Zaillian trabalharam na história por mais de uma década, e eu jamais mudaria uma vírgula sequer naquele script".

UM CONTO DE NATAL INVOLUNTÁRIO

"Roberto, nós já havíamos conversado antes, certo?" Não que a memória de Liam Neeson seja um prodígio, e claro que cada entrevista é aprovada antes de acontecer. Mas o gancho foi inusitado, e eu respondi que sim. Foi no fim de 2003, para o lançamento da comédia romântica Simplesmente Amor, que surge como um filme incomum em uma filmografia já bastante eclética. "Lembro que queria fazer algo mais leve, e o elenco era maravilhoso, as filmagens foram uma ótima surpresa", continua. "Mas é curioso perceber no que o filme se tornou ao longo dos anos, e tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra ele passou a ser um dos filmes natalinos favoritos de muita gente… Muita gente me para na rua para falar não de Star Wars ou de Busca Implacável, e sim de Simplesmente Amor." Embora seja uma comédia romântica, coube a Neeson um segmento mais emotivo do filme, o de um pai solteiro que precisa dar conta do filho pré-adolescente após a morte de sua esposa. "São lembranças doces, e eu te garanto que nem eu e nem meus colegas do elenco esperávamos que o filme fosse virar um favorito de Natal", conclui, sem perder o fôlego. "Bom, eu espero que a gente não demore outros quinze anos para conversar de novo." Amém, Liam!

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.