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Coringa: contar uma boa história é mais importante que ser fiel aos gibis

Roberto Sadovski

04/04/2019 02h41

O trailer de Coringa, reimaginação do Palhaço do Crime comandada por Todd Philips, é surpreendente! Curioso que ainda ontem, em minha crítica de Shazam!, eu comentei que filmes baseados em personagens de quadrinhos se encaixam em gêneros diferentes. Coringa, pelo que a prévia sugere, é um drama psicológico, um estudo de personagem, a visão de como um homem comum pode, por uma série de fatores, tornar-se um maníaco homicida. Joaquin Phoenix surge para dar rosto a essa nova visão, usando seu corpo e rosto para ilustrar a lenta descida de seu personagem à insanidade. Tudo isso emoldurado no "produto" que é o maior inimigo do Batman. É um desvio radical da encarnação mais recente do "vilão" nos gibis, o que causou reação negativa por parte dos fãs de HQs. A verdade que essa turma teima em não enxergar é uma só: quanto mais diferente, quando mais original e quanto mais surpreendente, melhor! Se for um bom filme, quem dá a mínima se ele não lembra "a revistinha que eu li quando moleque"?

Porque, convenhamos, não existe uma única versão do Coringa. Mesmo nos gibis, sua origem já foi contada e recontada um punhado de vezes, uma necessidade para deixar o personagem sempre interessante. Sua visual é constantemente reinventado, dependendo do novo artista que assume o lápis. Até em outras mídias suas interpretações são todas diferentes – e, ainda assim, todas são o Coringa. Seja o palhaço histérico criado por Cesar Romero na série de TV dos anos 60. Ou o gângster perigoso mostrado por Jack Nicholson em Batman. Tem também o lunático imprevisível com a voz de Mark Hamill na série animada. E o completo psicopata que queria ver o mundo em chamas imortalizado por Heath Ledger em O Cavaleiro das Trevas – e olha que ainda nem vimos a versão de Cameron Monaghan na temporada final de Gotham! Ou seja, quando alguém olha para Phoenix no trailer de Coringa e diz "ah, ele não é assim", a única reação possível é jogar um "senta ali, Claudia".

A intenção de Todd Philips, responsável pela trilogia Se Beber, Não Case, é justamente pegar todos os conceitos e todas as versões do personagem para entregar algo totalmente original. No novo filme, o personagem tem um nome (Arthur Fleck), vive com a mãe (Frances Conroy) e imagina uma vida melhor para si, ao mesmo tempo em que sente sua sanidade se estilhaçar com cada pedrada que a vida lhe dá. Não é uma "redenção" para o personagem, nem pretende ser uma origem definitiva: é uma visão nova e radical com criações já estabelecidas. A grande diferença da DC para a Marvel nos gibis, por sinal, é que a primeira não se furta em criar versões totalmente fora da casinha de seu imenso elenco de heróis e vilões. Já vimos o Batman desvendando o mistério de Jack, O Estripador, ou o Superman sendo criado não no coração da América, mas em meio à Rússia comunista. Coringa, portanto, traz zero conexão com qualquer outro filme da DC e estabelece sua própria cronologia, com direito a um Bruce Wayne criança, antes do assassinato de seus pais, e várias citações ao universo do Homem-Morcego.

Se vai funcionar? O primeiro trailer indica um caminho diferente, introspectivo, um drama conduzido por um dos melhores atores em atividade no cinema atual. Caminha bem longe do vilão criado por Jared Leto para Esquadrão Suicida, aproximando-se mais do tom de Taxi Driver, clássico urbano de Martin Scorsese – ter Robert DeNiro no elenco de Coringa não é obra do acaso. A essa altura, é impossível dizer se a empreitada vai ser um total fracasso ou um grande filme, mas é certo cravar que será a adaptação de um personagem icônico das HQs como nunca foi mostrada antes. Depois da fracassada "Era Snyder" para os heróis da DC, estamos testemunhando um esforço para corrigir o curso e entregar variedade, como filme de guerra (Mulher Maravilha), fantasia épica (Aquaman) e comédia (Shazam!). Coringa, que justifica os predicados "sombrio" e "perturbador", parece não se encaixar em nenhuma ideia pré-concebida sobre o que deve ser um "filme de quadrinhos". Quem de fato gosta do personagem sabe que nada é mais adequado.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.