Almodóvar dirige Antonio Banderas no papel de sua vida em Dor e Glória
Dor e Glória é o trabalho de um mestre. Cada frame é uma composição artística perfeita. Cada respiro do roteiro é uma aula de economia narrativa. É um filme vigoroso e revigorante, triunfante ao conferir a seus atores, e não a tudo que os cerca, a tarefa de hipnotizar, de surpreender, de contar sua história. Em especial Antonio Banderas, que entrega aqui talvez a melhor performance de toda sua carreira. É um alívio ver Pedro Almodóvar trazendo seu melhor jogo para o campo, depois de uma pá de filmes menores e indignos de seu talento. Dor e Glória é cinema de gente grande. Mesmo que, para isso, ele tenha de ser intimista, particular, confessional.
Só não chega a ser uma obra autobiográfica porque Almodóvar, reencontrando sua sensibilidade como roteirista, entendeu que a ficção é, muitas vezes, mais recompensadora do que a vida real. Ele bebe de suas lembranças na medida certa, sem nenhuma auto-indulgência, e essa linha turva entre o real e o imaginário termina como fio condutor da trama. O diretor, vale ressaltar, esteve sempre resguardado, já que (re)encontra em Antonio Banderas o avatar perfeito para sua jornada emocional. Ele é Salvador Mallo, cineasta festejado que, décadas atrás, abandonou uma vida de pobreza ao trocar o seminário pela vida esfuziante em Madri. Mas não é esse momento em que o encontramos, e sim três décadas depois de seu primeiro e maior sucesso, Sabor, que está sendo recuperado e vai ganhar uma nova exibição. Alquebrado, tanto por uma vida de enfermidades quanto pelo peso da idade, Mallo enxerga a oportunidade de fazer as pazes com seu passado, ao mesmo tempo em que lembra sua infância ao lado de sua mãe (interpretada sem afetação por Penelope Cruz).
O trabalho de Banderas não é menos que excepcional. O ator, que saiu do castigo dos filmes de ação produzidos direto para video/streaming, havia recuperado sua fagulha criativa ao interpretar Pablo Picasso na série Genius. Mas o desafio aqui foi ainda mais complexo, porque Salvador Mallo, embora traga ecos de Almodóvar, é uma criação de vida própria, com nuances e conflitos e sutilezas, que precisava de um intérprete afiadíssimo em seu ofício para transparecer cada fragmento de emoção. Ao rever a cópia restaurada de Sabor, ele busca o ator Alberto Crespo (o ótimo Asier Etxeandia), de quem se afastou abruptamente por trinta anos. Esse reencontro dispara não só sua fragilidade, representada pela descoberta tardia da heroína, mas também o reencontro de uma figura de seu passado, retrato de seus anos de formação e de excessos, o que talvez possa reacender a vontade, física e espiritual, de retomar a paixão pela sétima arte.
É justamente esse o coração de Dor e Glória: o filme não é uma expiação, e sim uma celebração do cinema e do poder reparador da arte. Assim como em seus melhores filmes, Almodóvar corta toda a gordura e deixa a narrativa acelerada e sempre no ponto certo. A gênese de sua paixão criativa não é mostrada didaticamente, e sim com recortes da vida de Mallo, acentuando a descoberta de sua sexualidade, a relação com sua mãe, a dor contante infligida por seu corpo frágil, a reparação com o passado e a redescoberta de um futuro. O cinema, tanto para o cineasta da ficção quanto para o homem por trás das câmeras no mundo real, surge como a esperança em um mundo que, sem arte, torna-se vazio. "O melhor ator não é o que chora", explica Mallo a certa altura. "Mas o que consegue, em momentos de forte emoção, segurar o choro." Não ceder ao melodrama, mesmo com temas tão duros, é o maior triunfo de Dor e Glória. Mas você pode ir sem medo: do lado de cá, as lágrimas estão liberadas.
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