Democracia em Vertigem retrata um país conduzido pela inércia
Existe uma certa melancolia na voz da diretora Petra Costa ao longo de Democracia em Vertigem. "A democracia brasileira e eu temos a mesma idade", revela, como narradora, logo nos primeiros minutos. "Achei que nessa idade já estaríamos em terra firme." De cara fica claro que o documentário não traz a menor pretensão em ser "isento" ou "imparcial". Por duas horas, Petra entrelaça suas próprias lembranças com os momentos mais decisivos do processo de redemocratização no país, retomado após décadas de ditadura militar. É sua visão, no coração do poder, que se desenlaça o teatro que terminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, na prisão do ex-presidente Lula e na ascensão ao poder de Jair Bolsonaro. Essa visão, claramente, tem um lado.
Dessa forma, Democracia em Vertigem surge mais como manifesto do que como documentário. O que é perfeito, já que a diretora, mais do que qualquer outro cineasta pátrio, traz as credenciais para fazer essa jornada no tempo e pelos bastidores do poder. Neta dos fundadores da empreiteira Andrade Gutiérrez, ela faz parte da mesma elite que dá as cartas na política nacional desde sempre – os "donos do Brasil", confortáveis em fortunas passadas de geração em geração, onipresentes no agronegócio, em construtoras, na estrutura financeira do país. Ao mesmo tempo, seus pais foram militantes da esquerda durante os Anos de Chumbo, vivendo uma década na clandestinidade, lutando contra a ditadura militar que esmagou a liberdade no país por vinte anos após o golpe de 1964. A proximidade com o dinheiro e também com os ideais libertários alimenta o fio condutor de seu trabalho – ao mesmo tempo um registro histórico contemporâneo, um raio-x das forças polarizadoras que dividem o país e um diário intimista em que ela tenta buscar algum sentido no caos que ameaça nossa jovem democracia.
Porque essa é, afinal, a tese que o filme defende: a vitória de Lula em 2002, e a condução do "povo" ao poder, marcaram um respiro que logo foi sufocado pelas forças de sempre atuando nos bastidores do mecanismo. A narrativa, por sinal, não traz fatos novos. (Re)descobrimos as ligações telefônicas, os conchavos, os passos em falso e o processo político/judicial que selou o destino de Lula e Dilma. O que faz do trabalho de Petra fascinante é a proximidade com este lado do poder, o que lhe deu imagens da intimidade de ambos os líderes em momentos-chave, da despedida de Lula da presidência à sua prisão no Sindicado dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, passando pela posse de Dilma e sua serenidade paradoxalmente explosiva durante todo o processo do impeachment. É um material poderoso, que ganha contexto com a narração com que Petra emoldura suas imagens.
O texto é, por sinal, melodramático, uma opção narrativa que foge do panfletarismo e ajuda a organizar os fatos em uma perspectiva cronológica. Estes mesmos fatos, do modo aqui enfileirados, revelam o processo que mirou uma retirada progressiva da esquerda do poder, culminando no abismo representado pelo atual ocupante do Palácio do Planalto. Mas engana-se quem reduz Democracia em Vertigem a uma simples peça "esquerdista". Com a mesma desenvoltura que o filme não esconde sua admiração pela força popular de Lula, e sua simpatia por Dilma durante o ataque que a derrubou, a diretora não se furta em mostrar que o PT, apesar de todo seu discurso, bandeou-se para o colo das mesmas forças políticas e econômicas que regem o país desde sempre. Falta, claro, contundência ao discursar sobre os (muitos) pecados do PT – mas a intenção nunca é equilibrar a balança, e sim apresentar uma visão muito pessoal desse teatro. O registro de Petra é sempre cuidadoso com o material captado (uma colagem com reportagens históricas, depoimentos dos protagonistas políticos, acesso sem precedentes a imagens exclusivas da intimidade de Lula e Dilma, e uma moldura com o interior do Palácio da Alvorada, vazio e imponente como uma mansão assombrada), montado em um crescendo para disparar os gatilhos emocionais desejados.
Seria ingenuidade, a essa altura, acreditar da idoneidade de qualquer político. Mas é louvável a habilidade com que Democracia em Vertigem demonstra a superioridade, ao menos em tese, do projeto que flertou com um governo mais popular representado pela ascensão de Lula e sua perpetuação com Dilma. É tocante o depoimento de uma funcionária do Palácio da Alvorada que, ao limpar suas escadarias após o impeachment de Dilma, a princípio diz acreditar que a ex-chefe está pagando por seus atos, para na mesma frase refletir e perceber o quanto sua condenação e subsequente retirada do poder foi injusta. Petra amarra esses momentos com a palavra de políticos de vários espectros, o que ajuda a desenhar a topografia dos bastidores do poder que culminaram no momento tenebroso que vivemos hoje.
Até porque é impossível ignorar a gigantesca polarização em que o país se encontra, e Democracia em Vertigem surge igualmente divisivo. É uma narrativa que prega aos convertidos, claro, com diversas personalidades cravando sua emoção ao assistir ao filme desde que ele foi disponibilizado pela Netflix. E é inegável o poder de Lula como político carismático, dirigindo-se à massa pouco antes de sua prisão, palavras encadeadas para despertar sentimentos de júbilo e enfatizar a sensação de injustiça. O retrato da comemoração de sua posse, em 2002, emana a sensação de esperança de um Brasil possível – oposto completo do clima de "ódio aos inimigos" impresso na celebração da posse de Bolsonaro. Dois países convivendo na mesma fronteira, resultado de uma vida inteira em busca de um "salvador". É o maior legado de Democracia em Vertigem: mostrar como a força que guia o Brasil não é o caos, e sim a inércia – como um trem descarrilhado, seus passageiros incapazes de frear o movimento, observando o desastre anunciado sem mover um músculo para impedir a colisão.
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