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Monstros digitais substituem o medo na decepcionante continuação de It

Roberto Sadovski

05/09/2019 03h36

Georgie sai na chuva, capa amarela cobrindo seu corpo, atrás do barco de papel que ele colocou na correnteza que segue pela sarjeta. O barco desce pelo bueiro e, quando o menino tenta alcançá-lo, depara-se com um par de olhos brilhante como um farol: é o palhaço Pennywise, que conversa com Georgie e promete lhe devolver seu brinquedo…. antes de arrancar o braço da criança, que é arrastada para o esgoto aos gritos, em um chafariz de sangue, estraçalhada pela criatura sobrenatural que agora mostra uma fileira de dentes afiados. A cena que abre It – A Coisa, adaptação do romance de Stephen King lançada dois anos atrás, é violenta, surpreendente, brutal e absolutamente assustadora. É o lembrete perfeito que a obra de King, diluída fora da literatura em um punhado de versões chinfrins, é poderosa e hipnotizante. É tudo, enfim, que sua continuação, comandada pelo mesmo Andy Muschietti, não é.

It – Capítulo 2, é um filme surpreendente por sua total falta de ambição, um caminho radicalmente oposto ao de seu antecessor. O mais impressionante é que o projeto foi tocado pela mesma equipe, com ainda mais recursos. Mas é uma várzea criativa, uma narrativa pesada que substitui a atmosfera apavorante e a sensação de total abandono por um desfile de criaturas digitais tão enfadonho e desinteressante como os efeitos exagerados de A Casa Amaldiçoada, lançado vinte anos atrás. A empatia criada pelo elenco infanto juvenil do filme de 2017, amparada pela clareza em entender que a história é uma alegoria sobre o medo de coisas bem reais (bullying, abuso infantil, a perda de um ente querido), foi transformada em uma aventura boboca, salpicada por sustos fáceis, em que o humor surge nos momentos mais inoportunos, fazendo com que o nó na garganta causado pela explosão de adrenalina que acompanha o medo se transforme em um bocejo incômodo. Puxar o sono, em filme de terror, é crime inafiançável.

O Clube dos Otários na calmaria antes da tempestade

A injeção de recursos já fica clara com o elenco escalado por Muschietti, encabeçado pelos astros James McAvoy e Jessica Chastain. Eles se juntam a Bill Hader, Isaiah Mustafa, Jay Ryan, James Ransone e Andy Bean como as versões adultas do Clube dos Otários, crianças que, quase três décadas antes, derrotaram o palhaço Pennywise, entidade que se alimenta de medo e que assombra a pequena Derry, cidade perdida no Maine. A derrota, como eles já sabiam, era temporária, e os amigos precisam cumprir a promessa de terminar o serviço caso a criatura retornasse. E é o que acontece, com fúria arrebatadora, quando os desaparecidos chamam a atenção de de Mike (Isaiah Mustafa), o único que não deixou Derry para trás. Cabe a ele ligar para os velhos amigos, abrindo memórias e velhas feridas que a distância transformara em uma lembrança incômoda. Este Capítulo 2, porém, não abre mão de flashbacks, com a narrativa ziguezagueando entre passado e presente, montando o tabuleiro em que Pennywise vai desenhar sua vingança.

Essa decisão cria uma cisão na estrutura bolada por Muschietti e pelo roteirista Gary Dauberman. Ao contrário do filme anterior, em que o texto tomava seu tempo para construir os laços entre as crianças, a narrativa fragmentada nunca deixa espaço para uma conexão emocional. O elenco se esforça, mas em nenhum momento eles parecem um grupo unido (literalmente) pelo sangue, e sim pessoas que não desistem de sua missão simplesmente porque o roteiro diz que sim. Mesmo quando a ameaça de Pennywise se mostra letalmente real, eles flertam com a dúvida antes de enfrentar mais uma vez o horror que pode lhes custar a vida. Para isso, eles precisam realizar um ritual indígena (que nunca fica claro por que funcionaria), trazendo artefatos que os conectem com o momento em que eles encararam seu maior medo – e o palhaço – pela primeira vez. Daí os flashbacks, quando acompanhamos os Otários mais uma vez quando crianças, em momentos que o filme anterior sequer sugeriu que existiram.

Pennywise mostra sua… verdadeira face?

Se o texto e as relações estivessem amarrados com terror real, com a atmosfera que fez do It de 2017 um filme tão envolvente e tão espetacular, os pecados poderiam ser perdoados. Mas seus realizadores sucumbiram à sedução dos efeitos digitais facilitados pelo orçamento maior. O resultado é um desfile de criaturas digitais tão abundante que perde seu impacto. Logo na primeira reunião dos Otários adultos, com a metamorfose de biscoitos da sorte em monstros saídos de um pesadelo, fica claro que o tom de Capítulo 2 será o excesso. Daí somos presenteados com estátuas que ganham vida, velhinhas macabras transformadas em bruxas histéricas, paixões infantis com cabeças flamejantes. O pior: nada tem consequência real, com a frase "tudo é apenas um sonho" repetida à exaustão. Quando chega o clímax, que repete exatamente os passos da aventura anterior, a plateia está tão exausta dos constantes ataques das criaturas digitais que não existe mais espaço para impacto.

A solução seria, portanto, concentrar-se no drama de cada personagem, fazer com que eles fossem pessoas reais, que tivessem medos e motivações. A vida adulta dos Otários, sugerida no começo do filme, é simplesmente abandonada pelo roteiro. Sem emoções e dramas reais para nos ancorar, resta apreciar o clima de montanha russa embalado pelo volume da trilha e pelos sustos fáceis, ainda que desconexos, espalhados ao longo de quase três horas de filme (eu cortaria as novas crianças que sucumbem ante o vilão e toda a trama envolvendo o assassino maluco Henry Bowers sem hesitar). Nem Pennywise, o bicho papão que habita nossos sonhos, teve melhor sorte. Apesar da caracterização impecável de Bill Skarsgård, e do design inspirado do palhaço, ele basicamente é uma repetição do que vimos antes. O livro traz uma conclusão maluca, que lida com dimensões paralelas e pesadelos lovecraftianos. It – Capítulo 2 não deve alcançar os inacreditáveis 700 milhões de dólares levantados por seu antecessor. Ainda assim, vai garantir um fim de ano mais folgado para o estúdio, que encontrou aqui uma propriedade intelectual espetacular, ainda que criativamente inócua. Se os cineastas já tomam tantas liberdades com o texto de King, prefiro imaginar um mundo em quea adaptação de It se resumiria ao brilhante primeiro filme, terminando com a promessa eterna de que Pennywise, um dia, voltaria para injetar medo em nossa alma.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.