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Quadrinhos de super-heróis tem espaço para tudo - menos para censura!

Roberto Sadovski

06/09/2019 21h29

A censura, ou cerceamento da liberdade de expressão em todas as esferas, é proibida no Brasil desde 3 de agosto de 1988, quando o tema foi votado como conteúdo da nova Constituição Federal no país. Já a homofobia tornou-se crime desde que a maioria dos ministros do STF deliberou sobre o tema em maio deste ano – com penas equiparadas às ofensas previstas na lei contra o racismo. Ainda assim, a prefeitura do Rio de Janeiro achou por bem recorrer à censura por motivos de homofobia ao tentar proibir a venda e recolher exemplares da graphic novel Os Vingadores: A Cruzada das Crianças. O motivo? Um beijo entre os personagens Wiccano e Hulkling, abertamente homossexuais.

A administração municipal depois recuou, dizendo que a intenção era outra. "Livros que trazem conteúdo sexual para menores precisam estar embalados com plástico preto, lacrados, e com aviso do conteúdo", disse o prefeito Marcelo Crivella em vídeo na internet, completando com a cereja no bolo: "A prefeitura entendeu inadequado, de acordo com o ECA, que uma obra de super-heróis apresente e ilustre o tema do homossexualismo (sic) a adolescentes e crianças, inclusive menores de 10 anos, sem que se avise antes qual seja o seu conteúdo". Ou seja, censura, homofobia e ignorância, a receita perfeita para um pensamento totalitarista e obscuro. Só para deixar claro: para o prefeito Marcelo Crivella, um beijo entre dois homens seria "pornografia"!. A Bienal, obviamente, deu de ombros para a "ordem" do prefeito e garantiu uma liminar judicial que impede a apreensão de livros durante o evento, que se encerra neste domingo.

Alan Scott, o Lanterna Verde da Terra 2, beija o namorado

Se a apreensão e a censura de obras literárias causa engulhos, a desculpa de "proteger as crianças" não passa de munição hipócrita para alimentar uma fatia do eleitorado, geralmente os evangélicos mais fanáticos, que esperam transformar o Brasil em uma Nova Gilead, teocracia repressora tal qual é apresentada em The Handmaid´s Tale, O Conto da Aia que passou do livro para a série de TV. Histórias em quadrinhos, vale ressaltar, são alvo fácil desse tipo de milícia. Primeiro porque uma turba ignorante ainda acredita que HQs, em especial de super-heróis, são "coisas para criança" – e elas precisam "ser protegidas". Segundo, as palavras acompanhadas por imagens exibem, muitas vezes, histórias e situações que despertam a fúria de qualquer fundamentalista, que acredita ter monopólio de um único modelo de família, sexualidade e sociedade. Quando arvorados por um presidente que dispara absurdos como "Família é homem e mulher, o resto é lixo", essa turma sai do armário com tochas em mão, tal qual nazistas que tinham alegria em queimar livros em praça pública.

O episódio mostra o quanto Crivella e seus comandados estão completamente deslocados da marcha do tempo. Enquanto o mundo se torna mais plural, mais diverso e mais sensacional, gente assim insiste em um retorno às masmorras, demonstrando uma visão obtusa e envelhecida do mundo. Já era um absurdo em 1954, quando o psiquiatra Fredric Wertham publicou Seduction of the Innocent, em que ele defendia, com dados fraudados, que as histórias em quadrinhos eram má influência para a juventude americana, contribuindo diretamente para a delinquência juvenil. Em uma verdadeira caça às bruxas, editoras de gibis, em especial de títulos de terror, fecharam as portas. A indústria, para não ser censurada pelo governo, preferiu uma auto regulamentação capenga, um código de conduta cheio de regras pueris e fora da realidade, que podou a imaginação de gerações inteiras de criadores, além de criar um lastro financeiro, já que muitos anunciantes só publicavam em revistas com o selo em sua capa. Embolorado e ultrapassado em definitivo no novo século, o tal selo do "Comic's Code" foi finalmente banido dos quadrinhos mainstream na edição 116 de X-Force, publicada pela Marvel em 2001.

Estrela Polar, mutante da Tropa Alfa da Marvel, beija o marido

Os Vingadores: A Cruzada das Crianças foi publicado originalmente em 2010, com texto e Allan Heinberg e Jim Cheung. A história, protagonizada pelos Jovens Vingadores, equipe formada por adolescentes que mantinham a chama do time principal acesa, traz a jornada dos herói Wiccano e Célere em descobrir a verdadeira identidade de sua mãe, que calha de ser a Feiticeira Escarlate. Na época da publicação, Wiccano já mantinha um relacionamento com outro herói, o híbrido Kree/Skrull Hulkling. Ao saber da polêmica, Cheung fez um longo post em seu instagram. "A arte apenas descreve um momento de ternura entre dois personagens que estão em um relacionamento estabelecido", comentou, surpreso. "O fato de este livro, de quase uma década atrás, estar agora sendo destacado pelo prefeito talvez apenas mostre como ele pode estar fora de contato com os tempos atuais." O detalhe é que a série foi publicada no Brasil em 2012 pela Panini, sendo republicada em formato graphic novel em 2016.

Não é a primeira, e nem de longe a última vez que quadrinhos de super-heróis trazem relacionamentos amorosos de casais homoafetivos. O Lanterna Verde da Terra 2, Alan Scott, é assumidamente gay. Estrela Polar, herói da Tropa Alfa da Marvel, casou-se com seu namorado em um gibi festejado. Ainda nos anos 80, a DC publicou a série Camelot 3000, que chegou ao Brasil como parte do mix dos gibis Heróis em Ação e Superamigos. A história levava ao futuro a saga do Rei Arthur contra a feiticeira Morgana Le Fey em meio a uma invasão alienígena na Terra. Os cavaleiros da Távola Redonda ressurgem reencarnados, e o roteirista Mike W. Barr colocou o valente Sir Tristão no corpo de uma mulher – quando ela lembra de sua vida anterior, tenta recuperar o corpo masculino, até perceber que seu sexo biológico em nenhum momento seria empecilho para seu romance com Isolda – as duas comemoram a vitória com um beijo tórrido. A versão encadernada da série certamente pode ser encontrada nas lojas de quadrinhos presentes na Bienal.

Tristão e Isolda finalmente consumam seu amor na série Camelot 3000

Eu lembro de ter lido Camelot 3000 ainda adolescente, e entender a diversidade das manifestações sexuais me ajudou – assim como a milhões de pessoas que consomem arte em todas as suas formas – a compreender a complexidade fascinante do ser humano, e a quebrar barreiras erguidas pelo preconceito e pela ignorância. Crianças, por sinal, não só podem como devem ser expostas a todas as formas de amor para entender, desde sempre, que nada é mais natural do que duas pessoas que se amam e que querem dividir um momento ou uma vida. A arte ainda é a melhor forma de evitar que as novas gerações se tornem pessoas amargas e reprimidas, guiadas pela inveja, pelo ódio, pelo preconceito e pela ignorância – imagine o estrago que um ser humano tão problemático pode fazer ao assumir cargos públicos de alto escalão! Certo está Felipe Neto, que saiu de trás do teclado e comprou 14 mil títulos de temática LGBT para distribuir gratuitamente na Bienal. "No momento que deixamos o prefeito transformar amor em pornografia, abrimos as portas para a repressão e o autoritarismo", disse em seu canal no YouTube, que arrematou com um recado ao prefeito. "Crivella, eu fiz isso pra te mostrar que não tem como você ganhar isso. É impossível, não tem como vocês reprimirem a população em pleno 2019."

Ah, a tentativa de censura foi um tiro pela culatra: TODOS os exemplares de Os Vingadores: A Cruzada das Crianças se esgotaram em todas as lojas espalhadas pela Bienal do Livro. As trevas não terão vez.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.