Com Joaquin Phoenix gigante, Coringa acena um mundo empolgante e imperfeito
Coringa é um agente do caos. E não poderia surgir em melhor hora. Este ano, afinal, consagrou em definitivo as adaptações dos super-heróis dos quadrinhos como uma força predominante no cinemão. Vingadores: Ultimato cravou a maior bilheteria da história. Em todas as mídias, vigilantes coloridos combatem o mal. Seja fazendo rir, como em Shazam!. Seja desconstruindo seus arquétipos com The Boys. Seja fracassando de maneira espetacular como em X-Men: Fênix Negra. Os justiceiros fantasiados estavam em uma gigantesca zona de conforto, colhendo merecidamente os louros de décadas confinados às páginas dos gibis e à bolha nerd/geek. Mas é claro que o Coringa, nêmesis do Batman e maior vilão já criado nos quadrinhos (e, possivelmente, fora deles), não ia deixar barato. Joaquin Phoenix e o diretor Todd Phillips foram os instrumentos para que o Palhaço do Crime mostrasse, mais uma vez, que ninguém está seguro. Mais ainda: que as possibilidades narrativas quando a fonte de tudo é uma HQ sequer foram arranhadas. Coringa acena um mundo novo, assustador e empolgante – mesmo que ainda imperfeito.
"Perfeição", aliás, é uma palavra que não casa com o Coringa. Pelo contrário. Em suas oito décadas dominando a cultura pop, o personagem funciona melhor quando surge como um mecanismo defeituoso, um espelho distorcido para quem o encara. Isso foi acentuado em sua redefinição como um psicopata homicida nos anos 70, lapidado na graphic novel A Piada Mortal nos anos 80 e traduzido para o mainstream primeiro com Jack Nicholson em 1989 em Batman, depois com Heath Ledger em 2008 em Batman – O Cavaleiro das Trevas. Nem a interpretação desastrosa de Jared Leto em Esquadrão Suicida arranhou sua reputação. Mas o vilão sempre funcionou bem como coadjuvante, como gatilho para incontáveis arcos dramáticos do Homem-Morcego. O anúncio de seu filme-solo foi, portanto, recebido com ceticismo, acentuado com a confirmação de Phillips (Se Beber, Não Case) na direção, depois mitigado com a confirmação de Phoenix como protagonista. Daí Coringa, programado para chegar aos cinemas durante a temporada mais prestigiosa do ano, aprontou das suas e ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza. E o mundo pausou para prestar atenção.
Porque Coringa, mesmo ancorado em uma propriedade intelectual poderosa, jogou pela janela conceitos atrelados a filmes baseados em HQs como universo compartilhado, fidelidade ao cânone ou personagens correlatos pipocando em cena. Nada de easter eggs. Com uma única exceção, nada do famigerado fan service, desculpa preguiçosa para agradar ao nicho. O interesse de Phillips claramente é abraçar o cinema americano sujo e urbano da segunda metade dos anos 70. Existe muito do Taxi Driver e de O Rei da Comédia de Martin Scorsese – trazer Robert De Niro, sólido como há muito não se via, como um apresentador de talk show não é obra do acaso. Mas existe também o niilismo desenfreado de Laranja Mecânica. A ingenuidade quase patológica de Charles Chaplin. A tragédia do clássico O Homem Que Ri, que em 1928 trouxe Conrad Veidt como o protagonista que inspirou Jerry Robinson a lapidar, uma década depois, o visual do vilão no recém-lançado gibi do Batman. Por outro lado, o diretor ignorou todas as narrativas que remontavam às origens do personagem nas HQs, preferindo se concentrar nos efeitos de uma vida em espiral descendente em um homem já mentalmente danificado. Em suas origens, inclusive na interpretação de Jack Nicholson, foi um banho em produtos químicos que criou o Coringa. Agora, o gatilho para sua desfiguração é a sociedade.
Foi o bastante, claro, para acionar todos os alarmes. Apesar dos louros colecionados pelo filme, ele também trouxe à tona o temor do horror bem real de psicopatas, brancos, hétero e solitários como ele, que usam a "opressão da sociedade" como cobertor para explosões de fúria, descontando suas frustrações agudas em pessoas inocentes. Nos EUA, tragédias assim se multiplicam de forma assustadora, e os símbolos espalhados pelo filme poderiam ser interpretados como um convite à mais violência. É uma bobagem, já que Coringa não é mais ou menos violento do que dúzias de produções despejadas continuamente no cinema e em streaming direto no coração da América. Mas é compreensível que um personagem que demanda tanta atenção logo acenda um holofote sobre sua cabeça. Assim como dá para entender quem crava que Coringa vai mudar o modo de fazer filmes baseados em gibis (não vai). Ou quem acredita que o filme de Phillips vai mudar a percepção da indústria para premiar adaptações de quadrinhos (Pantera Negra já fez isso ano passado). Mesmo que todo mundo tenha um fiapo de razão, existe um certo exagero em torno do filme. Estabelecidos no firmamento cinematográfico há pelo menos duas décadas, os filmes baseados em personagens dos quadrinhos parecem estar eternamente em busca de confirmação, de ser reconhecidos como "arte" por seus pares. Ser um filme acima da média não é o bastante?
Qualquer teoria, entretanto, vai por terra quando Coringa revela sua arma secreta. Joaquin Phoenix há muito já se estabeleceu como um dos grandes (se não o maior) ator de sua geração. Avesso ao cinemão entrelaçado à máquina hollywoodiana, ele se mostrou um camaleão de talento superlativo desde que saia da adolescência no genial Um Sonho Sem Limites, alternando filmes de grande escopo como Gladiador (de Ridley Scott) a dramas de absoluta estranheza como Ela, passando pela perfeição de Johnny & June e se tornando figura constante em filmes de M. Night Shyamalan, James Gray e Paul Thomas Anderson. Coringa, porém, é um animal completamente diferente. A composição física do personagem é meticulosa, com Phoenix traduzindo em seu corpo as transformações bruscas experimentadas pelo pretenso comediante Arthur Fleck. Ele vive em uma Gotham City imunda (a cidade enfrenta uma greve de lixeiros, os sacos de dejetos se empilham nas calçadas), cuida da mãe debilitada e trabalha como palhaço. Mas existe uma fissura em sua mente atribulada, e uma rotina de constantes reveses esfarela mais e mais sua já tênue conexão com a realidade.
Fleck é, por sinal, uma criação do cinema, já que a identidade do Coringa permanece uma incógnita nos gibis. A verdade é que funciona. Todd Phillips, que divide o roteiro com Scott Silver, usa a mitologia das HQs como mera inspiração, mas em nenhum momento se preocupa em amarrar com histórias pregressas. Thomas Wayne surge como milionário e candidato a prefeito de Gotham, assim como seu filho, Bruce. Mas a sombra do morcego está presente de forma periférica, já que o objetivo é dissecar a mente de Arthur, um estudo de personagem inserido em uma paisagem de pesadelo urbano. Sempre que Coringa ameaça escorregar para o lugar comum (em um ponto do terceiro ato o discurso do "a sociedade me fez assim" exige uma profundidade que Todd Phillips não consegue alcançar), Joaquin Phoenix surge como cavaleiro brilhante em seu resgate, trazendo camadas ao personagem que, mesmo com tantas versões e diferentes interpretações ao longo de décadas, ainda se mostram surpreendentes e aterrorizantes. Quando esse turbilhão mental explode em violência, ela jamais é gratuita, e sim conquistada com sangue, suor e uma risada maníaca. Coringa é a história de um homem que precisa se despir violentamente de qualquer traço de identidade e sanidade para finalmente se encontrar. É também a prova que um gênero cinematográfico ainda em sua infância não precisa estar encapsulado em uma única ideia. É o personagem certo com o filme certo na hora certa para abalar as estruturas do conforto. Uma experiência única e devastadora. Uma evolução movida a dor. Um agente do caos.
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