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Watchmen segue os passos da HQ e constrói um mundo complexo e fascinante

Roberto Sadovski

21/10/2019 04h04

Damon Lindelof pode ter assumido uma missão quase impossível ao topar criar uma nova versão de Watchmen para a TV. A boa notícia é que a série, que o autor chama de "remix", sequer tenta retomar o mundo erguido três décadas atrás por Alan Moore e Dave Gibbons. Ao usar os quadrinhos originais como base, retomando seus temas e inquietações refletindo o mundo atual, Lindelof criou uma obra igualmente misteriosa, complexa e fascinante, uma reflexão sobre brutalidade policial, racismo, supremacistas brancos e o papel de vigilantes em um mundo em equilíbrio tênue. É uma desconstrução não da ideia de malucos fantasiados em uma ilusão que os torna "super-heróis", e sim do estado das coisas sob uma ótica anabolizada. É o mundo de Trump, não de Reagan. Um mundo em que uma utopia parece alimentar a discórdia. Um mundo promissor e que convida a visitas repetidas para descascar sua superfície. É Watchmen. E não poderia ser diferente.

Ainda é cedo, portanto, para tirar qualquer conclusão sobre os rumos da série. O primeiro episódio, porém, trouxe uma sensação similar à de ler a primeira edição da minissérie escrita por Moore e desenhada por Gibbons em doze edições publicadas entre 1986 e 1987. A série abria com a morte do Comediante, vigilante de tendências fascistas que por anos matou em nome do governo americano. O mistério de seu assassinato faz com que o psicopata Rorschach passe a investigar sua teoria sobre um "matador de heróis", e aos poucos reúne os integrantes do supergrupo Watchmen e desvende a verdadeira conspiração por trás do crime. Moore, por sua vez, não tinha o menor interesse em fazer mais um gibi de vigilantes fantasiados. A trama foi sua válvula de escape para refletir suas próprias ansiedades vivendo na Inglaterra do governo Thatcher e um canal para desconstruir o conceito de super-heróis. O autor planejava usar personagens da Charlton Comics que a DC acabara de adquirir, mas foi convencido a criar novos heróis, provavelmente porque a editora tinha planos para integrar os novatos a seu universo (o que aconteceu com o Besouro Azul e o Questão, por exemplo).

Você sabe exatamente quem Jeremy Irons interpreta em Watchmen….

Watchmen foi um sucesso. Mais do que isso: foi um ponto de partida para novos autores, avançando nos anos 90, enxergasse outras possibilidades narrativas para super-heróis em mundos de fantasia. Enxergar um mundo realista nas páginas dos gibis passou a fazer parte do repertório de dúzias de roteiristas, e a desconstrução de conceitos estabelecidos ao longo de décadas, desde que o Superman deu as caras na primeira edição de Action Comics em 1938, foi elemento usado por muita gente de talento. De Rising Stars a The Boys ao recente Relógio do Juízo Final, o estilo estabelecido por Moore em sua série serviu ou de inspiração temática ou de base para uma continuação direta. Ainda assim, nada chegou perto do original. Talvez por ser impossível recapturar um raio em uma garrafa, mas as diferentes partes que formaram Watchmen tiveram alinhamento único nas doze edições publicadas pela DC trinta anos atrás.

O cinema não tardou em cortejar a obra de Moore e Gibbons, especialmente depois do sucesso fenomenal obtido por Batman, que Tim Burton dirigiu em 1989. Logo uma tropa de cineastas descobriu da pior maneira que a narrativa bolada pelo autor inglês funcionava exclusivamente como história em quadrinhos. Não é nenhum exagero. A estrutura da série, com seus flashbacks, suas histórias dentro da histórias, as intervenções ao fim de cada capítulo (fossem trechos de um livro lançado por um de seus personagens, fosse o relatório de um psicólogo sobre o estado mental de outro) – tudo era fundamental para compreender a trama completa. Terry Gillian tentou e desistiu. Paul Greengrass avançou um pouco mais e por fim não enxergou um formato que estivesse à altura da obra original. Zack Snyder por fim lançou uma adaptação no cinema dez anos atrás e, embora seu filme ganhe mais admiradores com o tempo, sua versão quase quadro a quadro da graphic novel realçou ainda mais a futilidade da empreitada. É uma versão condensada, ainda que satisfatória, mas que deixa de fora boa parte dos temas e conceitos que fazem de Watchmen tão relevante e atemporal.

Damon Lindelof troca uma ideia com Regina King durante as filmagens

Saber que a história não funcionaria fora dos gibis fez Lindelof tomar outra direção. Watchmen, a série, é parte do mesmo universo criado por Moore e Gibbons, mas a trama toma parte nos dias atuais, três décadas depois dos eventos mostrados na HQ. Tudo que existe nos quadrinhos, portanto, é cânone, como a morte do Comediante, a existência do primeiro grupo de vigilantes fantasiados, os Minutemen, ainda nos anos 30, a vitória dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (anexado como um estado americano) e o evento que destruiu Nova York e forçou a paz entre as potências atômicas – a estranha chuva de lulas que se liquefazem em terra mostra que algo fundamental foi alterado na arquitetura do planeta . O ponto de partida é a rebelião racial de 1921, um evento real em que brancos atacaram negros em Tulsa, Oklahoma, uma demonstração de ódio racial que deixou mais de trezentos mortos. Os pais de um garoto tentam garantir sua segurança ao fazer com que um casal o leve para fora da cidade, mas logo ele vê seus supostos protetores mortos, deixando-o com um bebê no colo e a cidade em chamas ao fundo.

A ação corta para 2019, quando policiais usam máscaras para esconder sua identidade após o ataque de um grupo supremacista branco chamado A 7ª Kavalaria e o governo do presidente Robert Redford, no poder desde 1992, mantém os policiais sem autonomia sobre suas armas. Vigilantes mascarados, como Looking Glass, Pirate Jenny e Red Scare, agem ao lado da polícia. A protagonista aqui é a detetive Angela Abar (Regina King, espetacular como sempre), que também esconde sua identidade como Sister Night e lidera a investigação sobre o ressurgimento da Kavalaria – que usam máscaras caseiras imitando Rorschach. O primeiro episódio aos poucos desenha este novo mundo, apresenta os novos personagens e sugere que a sombra dos quadrinhos originais permeia cada segundo dessa nova encarnação – o que fica claro com um interlúdio estranhíssimo, em que Jeremy Irons surge como um milionário em um castelo escocês, sem sequer tentar esconder que se trata de Adrian Veidt, o Ozymandias, embora ele jamais seja referido por seu mordomo e criada como nada além de "mestre". Escrever uma peça intitulada "O Filho do Relojoeiro", uma referência nada sutil ao onipresente Dr. Manhattan (o físico Jon Osterman, único personagem nos quadrinhos a ter superpoderes de verdade), estreia ainda mais a relação com o texto de Moore. Para os fãs da HQ original, este primeiro episódio vem coalhado de citações e easter eggs, mas nada que atrapalhe a fluidez da trama para os não-iniciados.

Dr. Manhattan chega em Marte na HQ de Alan Moore e Dave Gibbons

Watchmen chega à TV em um momento curioso na cultura pop. Super-heróis hoje são parte fundamental do DNA em todas as plataformas audiovisuais – do cinema ao streaming. Eles hoje romperam a bolha dos fãs mais fundamentalistas dos quadrinhos, e hoje não é necessário abrir uma página de gibis para apreciar suas aventuras. Embora mantenham-se firme na fantasia, muitas histórias hoje dialogam com quem busca tramas e temas mais complexos, ideias que vão além do sujeito com cuecas por cimas das calças surrando algum supervilão excêntrico. O sucesso de personagens dos quadrinhos com uma fatia de público extremamente ampla mostra que existe uma conexão além da superficial, e que filmes como Batman – O Cavaleiro das Trevas, Capitão América: O Soldado Invernal e Logan mostram uma visão clara e um vigor narrativo que apaga em definitivo o gueto em que os super-heróis se encontravam quando se aventuravam para além dos gibis. A celeuma em torno de Coringa mostra que as HQs são uma fonte de histórias tão nobre quanto qualquer outra.

Por outro lado, o modo como Alan Moore e Dave Gibbons abordaram o conceito de super-heróis em Watchmen, ao menos em sua temática inicial, esvazia-se quando não há mais o que desconstruir. A força narrativa da série, impactante ainda hoje, vem justamente do talento superlativo de Moore em costurar dúzias de referências em uma história familiar o bastante para ser compreendida, mas complexa o suficiente que justificar análises e releituras profundas. É uma obra-prima incontestável. Damon Lindelof entendeu a moldura que sustenta a HQ e trouxe sua atmosfera anárquica e reflexiva para o mundo de hoje, e este é seu maior triunfo em sua versão de Watchmen. O começo é intrigante, o gancho que encerra o primeiro episódio é surpreendente, os personagens são complexos – assim como nos quadrinhos, a série trará episódios focados em outros indivíduos, montando uma tapeçaria mais rica para desenvolver sua narrativa. Se havia um modo de apaziguar os executivos com os dedos coçando para explorar uma propriedade intelectual tão promissora, Watchmen começou da maneira certa. É um mundo que, por hora, vale a pena retornar. Antes, claro, que este mesmo mundo ameace acabar de novo.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.