Ford v Ferrari: Damon e Bale humanizam espetáculo em filme de gente grande
Carroll Shelby acelera o novo carro projetado para correr as lendárias 24 horas de Le Mans com o dono da bola, Henry Ford II, como carona. Ele quer mostrar ao empresário o que 9 milhões de dólares podem comprar, e pisa fundo na pista de testes, até o carro se tornar um borrão à distância. Ford, inundado pelo jato de adrenalina, cai no choro; Shelby explica que a teoria, quando tornada prática, requer a pessoa certa atrás do volante. Este é só um dos vários momentos de absoluto gênio em Ford v Ferrari, em que o diretor James Mangold usa recorte real da história do automobilismo como pano de fundo para um filme sobre amizade, sobre coragem, sobre corporativismo e sobre o fascínio do ser humano em desafiar seus próprios limites. Venha pelo espetáculo (as corridas são filmadas com precisão cirúrgica), fique pelo drama arrebatador conduzido por um par de astros no auge de seu ofício.
No papel de Shelby, Matt Damon empresta seu carisma para um personagem que era sua personificação. Único americano a vencer em Le Mans, na corrida disputada em 1959, o piloto se tornaria lenda também fora das pistas, cravando seu nome na história como um dos designers de carros esportivos mais festejados do mundo. Shelby era um astro e Damon encontra, entre o piloto impulsivo e o projetista equilibrado, o equilíbrio certo para representar o ícone. Do outro lado está Christian Bale, que devora o cenário como outro piloto, o britânico Ken Miles, genial tanto na preparação de seu carro quanto no talento atrás do volante. Sua genialidade nas listas só encontrou paralelo com seu temperamento explosivo fora delas, e Bale acerta o tom ao fazer de Miles não uma caricatura, mas um sujeito complexo que ia muito além da fúria e do desdém contra lacaios corporativos – o que muitas vezes prejudicou sua carreira. O encontro desses pólos é o fio condutor da trama.
Shleby e Miles já se conheciam antes da proposta da Ford Motors em construir um carro de corrida para disputar as 24 horas de Le Mans. A ideia do executivo Lee Iacocca (Jon Bernthal) era atrair um público jovem para os produtos do fabricante – até então os carros da Ford eram produzidos para tiozões que, no pós-Guerra, representavam o american way of life. Mas o volume de vendas não fazia com que a marca fosse sedutora, e o chefão Henry Ford II (Tracy Letts), neto do inventor do automóvel, comprou a briga com o italiano Enzo Ferrari – indiscutivelmente criador de um objeto do desejo, sedutor e quase inalcançável, campeão absoluto nas pistas da Europa. O plano, visto com olhos tortos pelo vice-presidente da Ford, Leo Beebe (Josh Lucas), era construir um carro capaz de humilhar a Ferrari em Le Mans. Shelby foi convocado para projetar o sonho. E trouxe Ken Miles como seu piloto.
É certo que a dramatização de uma história real busca espaço para pincelar a trama com elementos fictícios – a vida real, ao contrário do que muitos pensam, geralmente não rende um filme. Mas é certo também supor que Ford v Ferrari não se desvia radicalmente da jornada de Shelby e Miles para construir o Ford GT40 para disputar – e vencer – a corrida em 1966. É nessa amizade, com seus triunfos e tribulações, que o filme de Mangold encontra seu prumo. Ao manter o foco nos dois pilotos, o diretor humaniza um filme que poderia ser construído unicamente sobre uma base de adrenalina e testosterona. O trunfo aqui é entender que as corridas e a disputa "homem v corporação" é perfumaria, um pano de fundo para um estudo sobre o que motiva pessoas incomuns a desafiar seus limites. E não são apenas palavras. O automobilismo, antes das mil inovações tecnológicas desenhadas para garantir a segurança de seus entusiastas, era esporte de altíssimo risco: os pilotos eram literalmente presos em uma caixa de metal sobre rodas, disparada no asfalto em altíssima velocidade, com acidentes terminando em uma esfera de metal retorcido em chamas. Mangold conduz a narrativa com estilo e elegância, abraçando o subtexto (os executivos da Ford queriam manchetes e espetáculo, pouco se importando com as motivações de quem arriscava tudo na pista) e dando lastro para o trabalho perfeito de seu elenco.
O cinema já usou o automobilismo como moldura tanto para clássicos absolutos quanto para bobagens descartáveis. Steve McQueen, ele mesmo um entusiasta de corridas, protagonizou As 24 Horas de Le Mans em 1971, em um filme que usou imagens reais da corrida e troca diálogos e desenvolvimento de personagens pela sensação de como seria pilotar em uma das provas mais fisicamente complicadas da história – dois pilotos se alternam a cada quatro horas até fechar um dia inteiro de corrida. Le Mans, disputada anualmente desde 1923, é a prova mais longeva do automobilismo, e também a mais famosa. O documentário The 24 Hour War, de 2016, mostrou justamente a rivalidade entre Ford e Ferrari nos anos 60, quando toneladas de dinheiro foram queimadas para construir o carro perfeito. Em 1966, mesmo ano da prova mostrada no filme de James Mangold, James Garner foi o protagonista de Grand Prix, em que o diretor John Frankenheimer construiu uma trama em torno de uma temporada de automobilismo que navegou por diversas capitais do mundo com um elenco internacional, como Yves Montand e Toshiro Mifune. Recentemente, Ron Howard construiu a pequena obra prima Rush, em que Chris Hemsworth e Daniel Brühl assumiram o papel dos pilotos de Fórmula 1 James Hunt e Niki Lauda em sua disputa pelo pódio nos anos 70.
Ford v Ferrari garante seu lugar entre os grandes por, além de tudo, ser entretenimento de primeiríssima. Em especial quando acompanhamos Ken Miles atrás do volante, quando seu entusiasmo e competitividade transformam as brigas de bastidores, as maquinações corporativas e seus próprios problemas familiares em lembranças distantes no retrovisor. Sim, é uma história sobre obsessão, das pequenas vitórias aos grandes embates. Mas é também cinema da melhor qualidade, cinema de gente grande, que de vez em quando encontra espaço nos multiplexes para lembrar que ainda há artistas dispostos a contar boas histórias – e James Mangold, aqui em seu melhor trabalho, mostra que não existe nada que substitua uma boa história.
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