O Irlandês: Scorsese faz de seu filme mais ambicioso uma obra-prima moderna
Em um mundo perfeito, O Irlandês chegaria aos cinemas nessa temporada do fim do ano como a opção mais sofisticada para uma plateia ávida para ver o mais novo trabalho daquele que é indiscutivelmente o maior cineasta vivo. E poderia ser um sucesso absoluto, especialmente pelo quilate do elenco envolvido, com Robert De Niro e Al Pacino entregando seu melhor trabalho em anos. Em um mundo perfeito, O Irlandês seria um acontecimento, uma experiência de três horas e meia capaz de envolver salas lotadas em uma história intensa e arrebatadora, um pedaço da história contemporânea dramatizado para refletir os tempos modernos. A engrenagem, entretanto, não funciona mais assim. O Irlandês encontra-se, sim, em cartaz em algumas salas, mas nem de longe é o ideal para uma obra-prima desse calibre. Afinal, o drama assinado por Martin Scorsese não foi produzido para o cinema, e sim para a Netflix, e é a plataforma de streaming quem define quando e onde ele será exibido. Este é, afinal, um novo mundo. Imperfeito? Com certeza. Mais plural e democrático? Difícil discordar. O que importa, quando a poeira assenta, é o filme. O que importa é que O Irlandês existe.
Deve ser uma coisa geracional. No novo século, a velocidade de informação, impulsionada não só pela internet mas também pela facilidade e portabilidade dos aparelhos com os quais ela pode ser acessada, criou uma geração ansiosa. Desligar-se do mundo por um par de horas para assistir a um filme (ou uma peça no teatro, ou uma apresentação musical) é atividade de nicho. Para atrair essa mesma massa, o cinema soma espetáculo à narrativa, criando uma nova vertente de entretenimento – ainda cinema, diga-se, mesmo mais bombástico. Os filmes tornaram-se mais caros, os estúdios menos propensos a riscos. Isso não significa de forma alguma que histórias para um público que busca histórias deixaram de existir – hoje mesmo dá para ver em tela grande filmes tão distintos e tão sofisticados como Parasita, Ford v Ferrari e A Vida Invisível. Mas quando o orçamento começa a não apontar um retorno para quem paga a conta, a equação "liberdade criativa" versus "compromisso corporativo" fica mais difícil de ser equilibrada. O Irlandês, na máquina registradora dos grandes estúdios, se tornou um risco que ninguém quis pagar para ver. Ou quase.
Contar a história de Frank Sheeran, veterano da Segunda Guerra que avança de assassino de aluguel a confidente de Jimmy Hoffa, um dos líderes sindicais politicamente mais influentes da história, estava na mira de Scorsese há tempos. Ele chegou a um ponto de partida com livro I Heard You Paint Houses (traduzido por aqui como O Irlandês: Os Crimes de Frank Sheeran a Serviço da Máfia), lançado por Charles Brandt em 2004 com a ambição de desvendar o mistério do desaparecimento de Hoffa, que sumiu em meio a uma crise, e antes de recuperar seu capital político, em 1975. Era a oportunidade não só para o diretor retomar o tema do crime organizado, que ele abordou com tanta habilidade em Caminhos Perigosos, Cassino, Os Infiltrados e, principalmente, no espetacular Os Bons Companheiros, mas também reacender a parceria com De Niro. Transformar o livro em filme era empreitada ambiciosa, já que o roteiro de Steven Zaillian cobria décadas da vida dos protagonistas, antes ainda do encontro de Sheeran e Hoffa nos anos 60, até os primeiros anos depois da virada do século. Para tirar o texto do papel, Scorsese decidiu usar seu elenco em diferentes momentos cronológicos, usando tecnologia digital para deixá-lo mais jovem. O orçamento encostou em 140 milhões de dólares. O diretor levou o projeto para diversos estúdios, e a resposta foi uma só: não. A Netflix, por sua vez, não olhou para o fato de o filme ter três horas e meia, nem para o elenco de octogenários: enxergou em Scorsese o prestígio que tanto busca e pagou a conta sem piscar.
Não vou aqui entrar no mérito do que é ou não cinema, uma discussão que há tempos saiu de seu contexto para se tornar briga de torcida. É uma não-polêmica que torna-se ainda mais vazia ao encarar a experiência avassaladora que é assistir a O Irlandês. Martin Scorsese encarou sua ambição e criou mais uma obra prima. Não existe outra forma de enxergar seu filme, um estudo sofisticado e violento sobre política e sociedade nos Estados Unidos do pós-Guerra, em que o crime organizado ainda era visto com um certo romantismo, com gângsters e mafiosos idealizados como anti-heróis, justiceiros pós-modernos determinados a equilibrar uma balança que redesenhava a topografia do poder. A vida de Frank Sheeran é o fio condutor, um coadjuvante que agiu nas sombras e, no fim de sua vida, jogou luz em acontecimentos determinantes para compreender parte da história contemporânea, em especial a ascensão da família Kennedy à Casa Branca e o combate de forças federais ao mesmo crime organizado que, nas sombras, agia como poder paralelo. Jimmy Hoffa é figura determinante nessa narrativa, um líder poderosíssimo, controlando o sindicato dos caminhoneiros na América – os Teamsters -, tão famoso quanto astros do cinema em seu tempo.
Acima de tudo, O Irlandês é a celebração da melhor geração do cinema americano, representada especialmente por De Niro e Pacino. É fascinante observar o astro de Taxi Driver dando vida a Frank Sheeran em diferentes fases de sua vida, algo entre os 40 e 80 anos. A tecnologia para rejuvenescer o ator causa certa estranheza no começo (o cérebro insiste em dizer que a voz e as expressões corporais não são de alguém mais jovem), mas logo essa sensação se perde em meio ao texto envolvente e as interpretações absurdas. Pacino surge ainda mais à vontade como Jimmy Hoffa, combinando seus próprios maneirismos com o jeito histriônico e agressivo do sindicalista. Mas é Joe Pesci, saindo de uma aposentadoria de uma década, quem surpreende ainda mais. No papel de Russell Bufalino, mafioso de raízes italianas que toma Sheeran sob suas asas, o ator oscarizado por Os Bons Companheiros cria uma figura conflituosa, por vezes dividida pela afeição aos amigos e pela obrigação com a máfia. É um personagem complexo e fascinante em um mundo tomado por tons de cinza.
O grande astro aqui, entretanto, ainda é Martin Scorsese. Poucas vezes o diretor se mostrou tão seguro em sua narrativa. Não existe um momento desperdiçado em O Irlandês, não existe nenhuma cena, nenhum diálogo, nenhuma passagem que não seja essencial para a trama. Scorsese não tem pressa, criando aos poucos um épico sobre poder e dinheiro, sobre violência e lealdade, encontrando em um texto sobre crime e história espaço para contemplar a efemeridade da vida, para refletir eventos e conquistas tão impactantes no grande esquema das coisas e tão mesquinhas quando colocadas sob a luz do tempo. É um filme melancólico e intimista, executado em uma tela de grande escopo, refletindo a bagagem sem igual e o talento superlativo de todos os envolvidos. É cinema de verdade, sem meio termo, como só um mestre é capaz de criar. É arte. E é feito, claro, para ser apreciado na maior tela com o melhor som. Mas não perde um fragmento de seu impacto quando o cinema é a sala de sua casa.
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