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Caótico e cheio de personalidade, Aves de Rapina é show de Margot Robbie

Roberto Sadovski

07/02/2020 05h32

Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa é uma bagunça. É anárquico, caótico e muitas vezes não faz o menor sentido. Personagens surgem, desaparecem e voltam a dar as caras sem a menor explicação. A linha temporal é fragmentada (o que nem sempre ajuda a fluidez da narrativa), a trama é um fiapo de ideias requentadas e os personagens, tirando a protagonista, tem, no máximo, um rascunho de desenvolvimento. Mas, quer saber? O resultado é gloriosamente divertido! Nas mãos da diretora Cathy Yan, Aves de Rapina transforma essa confusão em energia criativa, encontrando em Margot Robbie a parceira perfeita para elevar este "filme de super-heróis" genérico a uma celebração hipercinética envolvente e empolgante, um pedaço de pop-art com explosão de cores, grafismos e direção de arte ao estilo "Tim Burton num dia de Sol". O que falta em coesão narrativa, transborda em personalidade – às vezes, acredite, é o bastante.

É também a chance de tirar o gosto amargo de Esquadrão Suicida, aventura capenga que teve como único brilho justamente a performance de Margot Robbie como Arlequina. Mas o que era uma personagem unidimensional, a femme fatale com um parafuso a menos, ganha aqui força dramática insuspeita e um arco dramático completo. Sua origem e os eventos do filme de David Ayer são relembrados logo nos créditos iniciais, que informam de cara o fim da relação de Harley Quinn com o Coringa. Existe um subtexto sobre como superar o rompimento de um relacionamento tóxico, mas Aves de Rapina não tem nenhuma pretensão em se aprofundar no tema: o foco não é o Palhaço do Crime, mesmo com sua sombra sendo essencial para a narrativa. Afinal, Harley sente-se intocável como namorada do vilão, e quando a separação é feita pública (ela explode o "símbolo" de seu amor), sua cabeça é colocada a prêmio por todo o submundo de Gotham – inclusive pelo gangster Roman Sionis, o Máscara Negra (Ewan McGregor, divertindo-se de montão).

A diretora Cathy Yan no set com suas garotas

Margot Robbie foi a primeira a entender a força da personagem não apenas como símbolo de empoderamento, mas também como propriedade intelectual. Assinando a aventura também como produtora, ela e a diretora tiraram de cena toda sugestão de símbolo sexual inerente à personagem, substituindo por algo mais poderoso: o trabalho em equipe feminino e a força irrefreável de mulheres quando atuam juntas – mesmo que o caminho seja tortuoso. Assim, Aves de Rapina torna-se uma representação genuína de girl power. O que já começa com a confiança depositada pelo estúdio em Cathy Yan, que não decepciona. A aventura tem ritmo, move-se em velocidade supersônica, é bem humorada e totalmente consciente de seu papel em ser uma aventura alto astral. Não tem as pretensões sócio-políticas de Mulher-Maravilha ou Capitã Marvel, talvez por isso traga interações mais naturais e pouse com mais leveza. A cena em que a Arlequina compartilha um elástico para cabelo com a Canário Negro no meio de um quebra-pau é o melhor exemplo de sororidade em filmes de ação modernos, porque é uma troca orgânica – as moças em minha sessão não seguraram um sorriso de cumplicidade.

Os fãs de quadrinhos "raiz" – ou seja, a turma chata que reclama quando uma costura no traje de um personagem é diferente de sua versão nos gibis -, vão se descabelar com as mudanças nas personagens. Dinah Lance, a Canário Negro (Jurnee Smollett-Bell) passa longe da loira com meia arrastão que namora o Arqueiro Verde: aqui ela é uma cantora no clube de Sionis que tem pouca paciência para injustiças e sabe se virar numa briga. A policial casca-grossa Renee Montoya não é braço direito do comissãrio Jim Gordon – e ela nos faz perceber que a incrível Rosie Perez tinha de aparecer em mais filmes. Mary Elizabeth Winstead não ganha muito o que fazer como a Caçadora, mas encarna a assassina em busca de vingança com tanta seriedade que parece estar na trilogia O Cavaleiro das Trevas (o que é, acredite, um barato). A maior mudança, porém, fica por conta de Cassandra Cain (Ella Jay Basco). A encarnação mais letal da Batgirl nos gibis, aqui ela é uma adolescente que se vira roubando transeuntes insuspeitos pelas ruas de Gotham. Ao se apossar de um diamante cobiçado pelo Máscara Negra (o macguffin do filme!), ela se torna um alvo e termina na mira de Arlequina e cia.

As Aves de Rapina, prontas para chutar traseiros

A trama é só desculpa para Arlequina superar sua dependência do ex e ganhar sua emancipação, trocando o "All By Myself" de O Diário de Bridget Jones por ultraviolência e humor afiado. Todos parecem se divertir em cena, ninguém leva a coisa muito a sério, e Aves de Rapina só é um filme "para maiores" por disparar um palavrão aqui, um corpo explodindo ali. Mas não é "sombrio e realista" como muitos acreditar ser o ideal para uma aventura de super-heróis. O tom é mais próximo ao de Shazam!, assim como a proposta: existe uma relação marginal com o universo compartilhado por Batman vs Superman e Esquadrão Suicida, mas em nenhum momento isso é colocado como uma bola de ferro atada ao calcanhar. Ewan McGregor entendeu o espírito da coisa e faz de seu Máscara Negra um vilão afetado e fantasioso, como se tivesse sido extraído de um episódio da série do Batman dos anos 60 – seu relacionamento homoerótico com o assassino Victor Zsasz (Chris Messina) amplifica esse clima camp. Faltam onomatopéias nas cenas de ação estilosas, bem ao estilo Deadpool e John Wick. E o figurino da Arlequina é coisa linda, fazendo a alegria de uma geração inteira de cosplayers que não aguentavam mais usar a camiseta "Daddy's Little Monster".

O maior problema da aventura é também seu maior triunfo: as Aves de Rapina funcionam tão bem juntas, a química entre as atrizes é tão natural, que é um pecado elas só se reunirem lá pelo terceiro ato. Mas tudo bem, afinal o show aqui é de Margot Robbie. Mesmo com toda a reformulação da DC no cinema, e do fim de seu universo estendido, especialmente após o fracasso criativo de Liga da Justiça, o retorno da Arlequina e sua ascenção ao posto de protagonista representam uma vitória pessoal para a atriz. Livre do elo com o Coringa, a personagem assume sua posição como ícone cinematográfico feminino sem estar à sombra de ninguém. O sucesso do filme com Joaquin Phoenix sepulta a possibilidade dessa versão da Arlequina dividir o palco com o Palhaço do Crime (sorry, Jared Leto), e o reboot do Homem-Morcego em The Batman, com Robert Pattinson, elimina qualquer chance de Ben Affleck atrapalhar o show. Margot já verbalizou sua vontade de levar para o cinema a parceria com outra vilã de Gotham City, a Hera Venenosa. E não há a menor dúvida que seu papel será anabolizado em The Suicide Squad, que James Gunn está filmando para o ano que vem. O ponto de partida de sua emancipação é aqui, neste filme imperfeito como ela, que encontra conforto em meio ao caos e prova que, com Margot Robbie no comando, o futuro de Harley Quinn no cinema está nas mãos mais capazes.

Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.