Dolittle: Sério que esse é o rumo da carreira de Downey Jr. pós-Marvel?
Dolittle é um filme confuso, mal executado, que deve agradar tão somente crianças muito pequenas que podem rir com piadas de pum. É também uma escolha curiosíssima para Robert Downey Jr. iniciar uma nova fase em sua carreira, depois de mais de uma década como astro global graças a seu trabalho como Tony Stark no universo cinematográfico Marvel. Em teoria não seria uma escolha ruim, e sim uma bem vinda mudança de rumo.
Dr. Dolittle, personagem infantil criado por Hugh Lofting em 1920, faz parte do imaginário lúdico ianque graças a uma série de quatorze livros publicados até 1952, anos depois da morte de seu autor. O médico da Era Vitoriana capaz de falar com animais é leitura obrigatória constantemente adaptada nos palcos, em rádio, na TV e no cinema. Depois de um arco completo como o Homem de Ferro por uma década, encerrando sua narrativa em Vingadores: Ultimato, o desejo de Downey em pegar leve (e, talvez, iniciar uma nova série) era compreensível. Mas as coisas deram errado. Muito errado.
Boa parte da narrativa do novo filme é adaptada do segundo livro publicado por Lofting, The Voyages of Doctor Doolitle, e mistura aventura épica, caça ao tesouro e um subtexto sobre encontrar seu objetivo no mundo que não pesa a mão para ser melhor absorvido pela petizada. A natureza da história, entretanto, deixa ainda mais estranha a escolha de Stephen Gaghan para tocar o projeto. Roteirista de Traffic e diretor de Syriana, seu trabalho inclinava-se para contos sobre zonas de conflito e histórias que circulavam temas contemporâneos. Talvez exista no personagem John Dolittle uma sugestão do tipo de pessoa fragmentada que possa chamar a atenção de Gaghan, mas é aprofundar demais uma teoria em um personagem que não é assim tão complexo.
Dolittle coloca as cartas na mesa em um prólogo em animação que termina sendo o melhor do filme, explicando como o médico abraçou sua habilidade em falar com os animais, tornando-se sensação na terra da Rainha Victoria, que lhe concedeu um santuário para atender sua clientela peculiar e mantê-los à salvo. A tragédia surge quando sua esposa, a exploradora Lily, desaparece em um naufrágio, fazendo com que Dolittle corte seus laços com a humanidade e isole-se em sua mansão cercado dos únicos amigos que lhe restam: os bichos.
Depois deste pequeno prólogo, o filme apresenta o verdadeiro protagonista da aventura: Stubbins (Harry Collett, desesperadamente precisando de direção), que atira acidentalmente num esquilo e invade o santuário em busca da ajuda de Dolittle. Coincidentemente, ele chega ao mesmo tempo que uma enviada da Rainha, convocando o médico exêntrico para deixar seu exílio e atender a soberana da Inglaterra, que encontra-se acamada por uma doença misteriosa.
Tudo é desculpa para Dolittle finalmente espantar seu torpor e partir em uma viagem náutica em busca da mítica Árvore do Édem, cujo fruto pode curar qualquer doença, e que fazia parte da mesma jornad que vitimou sua cara-metade anos antes. Ah, o vilão nada sutil é um médico invejoso (Michael Sheen) que pode estar envolvido em uma trama contra a Rainha e precisa impedir o sucesso de Dolittle a todo custo. E é isso: um pouco de Piratas do Caribe, uma pitada de Crônicas de Nárnia e uma história que, para funcionar, precisa estar ancorada no carisma de Robert Downey Jr. – carisma que, por sinal, ele deve ter deixado guardado em alguma gaveta.
Porque nada explica a total apatia do astro em quase duas horas de filme. É compreensível que Downey não queira repetir nem um traço da personalidade magnética de Tony Stark, mas sua composição para John Dolittle é tão entediante que eu me peguei torcendo para que ele tivesse o mínimo impacto na trama. Cada vez que ele abre a boca e dispara mais uma frase ininteligível (sério, Robert, qual é?!!), o filme afunda um pouco mais. A criançada não vai se importar, já que o atrativo para os pequenos é a coleção de animais em torno do protagonista, uma prole em CGI com mais pulso que todos os humanos em cena.
Dolittle conseguiu atrair um grupo considerável de atores para emprestar a voz aos bichos digitais, da arara Polly (Emma Thompson) ao cachorro Jip (Tom Holland), passando pela ganso Dab-Dab (Octavia Spencer), o gorila Chee-Chee (Rami Malek) e o urso polar Yoshi (John Cena). A animação dos bichos é mais bem cuidada e convincente do que a fauna estilo Discovery Channel de O Rei Leão, e apostam em um humor bastante pueril para manter a bola em jogo. Tentar, entretanto, não é conseguir.
O motivo pode estar nos bastidores conturbados da produção. A falta de familiaridade de Gaghan com cenários e criaturas digitais logo ficou evidente quando as primeiras exibições-teste do filme foram um desastre, com piadas sem graça e narrativa sem ritmo. O diretor Jonathan Leibesman (responsável pelo reboot de As Tartarugas Ninja) supervisionou a filmagem de cenas adicionais, enquanto Chris McKay (Lego Batman) tentava reescrever o roteiro para melhorar humor e estrutura.
Essa colcha de retalhos está em cada frame: por vezes o filme parece incompleto, com a narração de Emma Thompson claramente tapando rombos no roteiro ou compensando sequências nunca filmadas. Quando Downey e Collett precisam para em uma ilha comandada por um criminoso lendário (Antonio Banderas ao menos parece se divertir), a narrativa engole cenas inteiras. É quando Dolittle comete o maior pecado de um filme: em vez de mostrar a ação, o que é básico em uma mídia audiovisual, ele prefere contar o que aconteceu, deixando a plateia coçando a cabeça. É bizarro, é amador e é imperdoável em um filme desse porte.
A carreira de Robert Downey Jr. desde que Homem de Ferro o resgatou do limbo em 2008 foi estelar, embora monotemática. Claro, ele cravou uma indicação ao Oscar por seu trabalho em Trovão Tropical e ainda disparou uma nova série com dois Sherlock Holmes (um terceiro está a caminho). Tirando um respiro com o drama O Juiz, porém, seu trabalho foi mesmo criar um arco completo para Tony Stark, realizado em dez filmes para a Marvel. Livre de seus demônios, milionário, pai de família e respeitado por seus pares, Downey tinha total liberdade para escolher qualquer rumo, certo de que o público o seguiria.
Não foi bem assim. Dolittle naufragou nas bilheterias americanas, sinalizando uma jornada tortuosa para Robert Downey Jr. longe do universo mais lucrativo da história do cinema. O personagem de Hugh Lofting, por sua vez, continua sem uma adaptação para o cinema digna de sua importâcia. A versão que Richard Fleischer dirigiu em 1967 é uma bagunça. Quando sua melhor tradução para a tela grande é uma comédia boboca estrelada por Eddie Murphy, talvez seja mesmo a hora de fechar o consultório.
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