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Latitudes aponta um novo caminho para fazer cinema no Brasil

Roberto Sadovski

15/03/2014 03h37

Latitudes está em cartaz há poucas semanas no Brasil. É um romance simpático, em que a editora de moda defendida por Alice Braga conhece o fotógrafo interpretado por Daniel de Oliveira, e os dois desenvolvem um relacionamento atípico, em quartos de hotéis pelo mundo, quando o trabalho de ambos se cruza. Lembrei um pouco de Antes do Amanhecer e de outros romances improváveis carregados pelo acaso. Alice e Daniel tem uma química bacana em cena, e sentimos suas preocupações, angústias, sentimentos, dor e paixão. É um romance de verdade em um cenário lúdico. É também um filme ambicioso que pode sinalizar um novo modelo para fazer cinema no Brasil.

Um cinema, que veja só, sequer começa no cinema.

O projeto Latitudes, do diretor e roteirista Felipe Braga, foi bolado como uma experiência na You Tube. "Queria fazer algo sem as amarras de editais ou dos caminhos comuns do audiovisual nacional", conta. A história de amor dos personagens de Alice e Daniel precisou de um planejamento de produção minucioso e de um roteiro bem amarrado. "Tínhamos a idéia, um bom time nos bastidores e os contatos para realizar os vídeos", continua. Uma produção da House e Los Bragas em parceria com a O2, Latitudes se beneficiou de seus parceiros comerciais da produtora e de uma equipe esperta. "Na ponta do lápis, o custo do projeto seria astronômico", explica Felipe, atualmente roteirizando a biografia Marighella, estreia na direção de Wagner Moura. "Mas conseguimos o apoio de todos os hotéis que procuramos. Eles entenderam o valor de uma permuta assim, principalmente com o Brasil sob os olhos do mundo."

Assim, a produção de Latitudes, apoiada em três patrocinadores, desenhou uma agenda de filmagens global. A equipe filmou em oito países diferentes, acompanhando a trajetória fictícia de Olivia (Alice Braga) e José (Daniel de Oliveira). "O planejamento foi essencial", aponta o diretor. "Viajávamos com uma equipe enxuta, recrutando técnicos em cada cidade quando necessário. E ficávamos todos hospedados nos hotéis em que a história se desenrola." Em alguns casos, o texto foi adaptado para cada lugar, já que os luxuosos hotéis, de Paris a Veneza, passando por Londres e Istambul, traziam sua própria bagagem. Acidentes felizes, como a cena em que Olivia acompanha um desfile de alta costura em Londres, adicionam valores à produção. "O convite para ir ao desfile foi inesperado, e quase desistimos", diverte-se Felipe. "No fim, fomos só eu e Alice, com a condição de que ela estaria lá o tempo todo como Olivia, o que a marca topou. Todas as reações dos presentes com ela são 100 por cento naturais."

O canal para desaguar o projeto foi o You Tube, que contabilizou quase 470 mil views no episódio mais procurado, com o casal em um hotel espetacular em Paris. "Colocar Latitudes logo no ar, em uma plataforma global, foi essencial para o projeto respirar e também para mostrar a nossos parceiros que a iniciativa era viável", continua Felipe. O canal de vídeos online, iniciado em julho do ano passado, exibiu cada um dos encontros de Olivia e José em episódios com 15 minutos em média. A série foi reeditada para a exibição na TV (pelo canal fechado TNT) e ganhou uma nova montagem e trilha para sua versão em cinema. Mantendo tudo em casa, a distribuição foi da O2 Play, recém criado braço da produtora para abraçar, produzir e colocar no mundo projetos e propostas que fujam do padrão que o audiovisual brasileiro segue desde a chamada retomada da produção nacional, quase duas décadas atrás.

Mas a teoria cairia por terra caso Latitudes não fosse um produto elegante e bem produzido. Alice e Daniel injetam veracidade a personagens atípicos para os padrões brasileiros (bem sucedidos, sem uma gota de discurso social forçado) e entregam um casal que vive em compartimentos, tendo uma mala como a única constante. Ambientar a história em hotéis – lugares impessoais, residências temporárias – ajuda no clima de incerteza que eles experimentam. O final feliz não é uma certeza, e a ausência de narrativa fora do núcleo aumenta ainda mais a sensação de desamparo dos dois. O elo mais fraco de Latitudes, não coincidentemente, é o encontro de Olivia e José com seus pares em sua "vida normal". Os episódios no You Tube exploram estes elementos de maneira que o cinema não consegue.

De pretensões imediatas modestas, Latitudes representa um novo caminho, algo que o cinema brasileiro necessita desesperadamente para sair de sua espiral monotemática e impessoal onipresente nas telas atuais. Não que as comédias que arrastam milhões aos cinemas não sejam necessárias – na verdade, são até cruciais para levar um público ao cinema para ouvir sua língua natal. Mas este círculo, vinculado a orçamentos muitas vezes irreais, impede que o cinema respire em gêneros diferentes. Produtos multiplataforma como Latitudes representam uma direção em que novas ideias podem prosperar. Mesmo que seja no espaço árido de um quarto de hotel.

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.