Relatos Selvagens traz o melhor do cinema argentino com violência e humor
Roberto Sadovski
27/10/2014 06h46
O que o cinema argentino tem de tão especial? Antes de mais nada, deixa eu tirar logo da frente: sim, os hermanos fazem os melhores filmes desse lado de baixo do continente. Cinema com frio na barriga, nó na garganta e sangue nos olhos. É uma mistura de paixão com técnica, de entrega emocional com apuro narrativo. Ok, como todo o resto na vida, generalizar é um problema, então eu vou afunilar as ideias: Relatos Selvagens, que estreou na Mostra de Cinema de São Paulo e está em cartaz no circuitão, é um filmaço. Tão simples em seu conceito, tão brilhante em sua execução, tão merecedor de seu sucesso. Em casa, a comédia dramática (dramédia?) de Damián Szifron já levou mais de 3 milhões de pessoas ao cinema e segura há oito semanas a ponta das bilheterias locais – só para comparar, quando um filme consegue mais de duas semanas em primeiro lugar nos Estados Unidos, executivos de estúdios choram de emoção. Nada mal para um filme sobre violência e vingança.
Szifron, que fez sua carreira na TV argentina, é um contador de histórias habilidoso. E seus Relatos Selvagens são uma coleção de instantâneos que registram a selvageria humana em situações cotidianas. Isso pode até soar como a tese de algum filme cabeçudo, e a verdade não poderia estar mais distante. Cada uma das histórias – seis curtas não relacionados que desfilam em pouco mais de duas horas de filme – traz uma urgência que alimenta o bom cinema. O pulo do gato de Szifron foi amarrar doses cavalares de humor negro com a boa e velha ultraviolência em histórias facilmente assimiladas. Como toda "coletânea", faz falta uma cola para amarrar todos os pedaços, mas é um detalhe irrelevante quando os contos caminham velozmente, amarrando plot, desenvolvimento e clímax em pacotes compactos e sempre surpreendentes.
Ajuda, claro, o diretor/roteirista ter um elenco tão brilhante à disposição. Leonardo Sbaraglia e Walter Donado promovem um embate de dois motoristas numa estrada deserta que escala de ofensa a violência desmedida de maneira áspera, que descamba para um desfecho nervoso e inesperado. Érica Rivas é a noiva que, na festa de seu casamento, descobre que o noivo não é a pérola que ela imaginava, e sua resposta a uma traição é cada vez mais incômoda e mais sensacional de testemunhar. O episódio "A Proposta", em que o filho adolescente de um milionário atropela uma mulher grávida, deixando com seu pai e seu advogado o trampo de encontrar um bode expiatório, é o mais fraco do conjunto – ainda assim, pinta, em alguns minutos e com habilidade, o retrato de uma elite que se acha inatingível misturada com uma dose de corrupção policial. E não falta o ator-assinatura do cinema argentino, Ricardo Darín, como um engenheiro que vê sua vida entrar em colapso por causa da burocracia estatal: é um segmento previsível mas que ganha identificação imediata.
Esse é o grande trunfo dos nossos vizinhos: seu cinema dialoga com o público. Relatos Selvagens pode até trazer alguma crítica social, uma reflexão mais profunda, mas nunca perde o foco de que cinema é entretenimento. O último filme brasileiro que trouxe essa mistura foi Tropa de Elite 2 – e o resultado foi a maior bilheteria de um filme nacional da história. Não é por acaso que as comédias brasileiras modernas, independente de sua qualidade, também consigam colocar o público nas poltronas. Essa cadeia de fatores – qualidade narrativa, escopo emocional, sucesso de público – fez de Relatos Selvagens candidato natural da Argentina para uma vaga ao Oscar de melhor filme estrangeiro para o ano que vem. O representando do Brasil, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, é um filme bonitinho, correto, agradável e bacana. Mas não dá frio na barriga. Não deixa nó na garganta. Não tem sangue nos olhos. Se é a hora de a gente dar este salto, olhar para o quintal do vizinho pode ser uma boa. Mas você pode também deixar tudo isso de lado e simplesmente assistir a Relatos Selvagens: é o melhor programa em cartaz.
Sobre o autor
Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".
Sobre o blog
Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.