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Como a trilogia Mad Max inventou o futuro pós-apocalíptico no cinema

Roberto Sadovski

11/05/2015 00h53

Quando Mel Gibson apareceu semana passada na estreia de Mad Max: Estrada da Fúria, foi um flashback bacana. O astro não está no filme de George Miller (essa semana eu conto por aqui o que achei!), já que Tom Hardy assumiu seu personagem. Mas trinta anos atrás, quando o "guerreiro das estradas" foi deixado para trás depois de salvar o que restava de esperança num mundo pós-apocalíptico, Gibson encarnava à perfeição o anti-herói, um homem que perdeu tudo para se tornar o último vingador em uma terra devastada por guerras, em que a humanidade reduziu-se a tribos disputando por água e combustível. Trinta anos é uma vida, e nesse intervalo Mad Max passou a ocupar lugar privilegiado entre os ícones do cinema. Até então, um ícone que pertencia a outra época, a outro tipo de cinema, mais visceral e menos voltado a transformar tudo em um produto.

Porque Mad Max, o filme em que George Miller começou a definir seu herói em 1979, é tudo menos isso. Mel Gibson tinha então 23 anos. Longe dos holofotes de Hollywood, ele garfou o papel do policial Max Rockatansky e não hesitou. Miller também tinha sangue nos olhos. Aos 34 anos, ele trabalhava como médico na emergência de um hospital em Sydney, e não era raro atender a pacientes com tramas causados por acidentes de carros. Ao mesmo tempo, exercitava sua paixão por cinema em curtas que chamaram a atenção na indústria na Austrália. Inspirado pelo neo clássico O Menino e Seu Cachorro (de 1975, com um Don Johnson entrando na adolescência), o diretor desenhou um futuro em que a civilização caminhava numa linha tênue entre ordem e caos total. As estradas eram dominadas por gangues selvagens, e o que ainda funcionava como força policial claramente travava uma batalha perdida. Max, marido e pai, logo viu seu mundo ser tomado de maneira brutal, e sua passagem para "o outro lado", em que as regras não faziam mais sentido, foi definitiva.

Mel Gibson aos 23: um menino quase pós-apocalíptico

 

Mel Gibson, por sinal, quase não ficou com o papel, já que no dia do teste com os produtores e Miller, ele apareceu com o rosto inchado, o nariz deslocado e a mandíbula quebrada – resultado de uma briga de bar na noite anterior. Como a produção precisava de gente "bizarra", ele terminou voltando duas semanas depois. O rosto quase curado, entretanto, fez com que as mesmas pessoas não o reconhecessem, e com um teste rápido ele ficou com o papel de Max. O orçamento curto fez com que o diretor fosse criativo, otimizando seus recursos e usando figurantes com suas próprias roupas e veículos – como vários motociclistas – em cena. O faro de Miller para criar cenas que pareciam custar dez vezes mais fez com que Mad Max parecesse um filme maior do que realmente era, e o público australiano, em retorno, compareceu em massa. A estreia de George Miller ainda é um exemplo de cinema cru, ousado, criativo, violento e sensacional. Um triunfo que abriu as portas do mundo para seus realizadores.

Mas Miller queria mais, queria ir além de sua experiência inicial. Em 1981, com Gibson beliscando o estrelado, ele lançou Mad Max 2: A Caçada Continua, indo além das ideias ensaiadas no filme anterior. O jogo era outro. Logo em sua cena inicial, o filme mostra como o mundo caiu no caos total, como a civilização entrou em colapso e como o mundo não possui mais ordem. Nesse cenário, Max ressurge como um guerreiro solitário nas estradas, em busca de sobreviver. Ele ajuda um grupo que resiste ao ataque de uma gangue sanguinária e impiedosa não por altruísmo, mas por querer parte de seu combustível. O plot é uma desculpa para uma cena de perseguição no outback australiano, em que carros, motos e caminhões chocam-se como gladiadores, com pedaços de carne e metal misturando-se com a areia do deserto. A coreografia de destruição é conduzida à perfeição por Miller – tudo isso em uma época sem computadores para ajudar a execução, sem dublês digitais, com gente de verdade criando cenas reais.

A imagem icônica de Gibson no segundo Mad Max

O maior mérito de Mad Max 2, porém, é ensinar ao cinema como construir um futuro pós-apocalíptico, estabelecendo com mais recursos a realidade sugerida na aventura de 1979. Filmes distópicos não são novidade desde que Maria revelou-se um robô em Metrópolis, de Fritz Lang. Mas a sociedade e o planeta imaginados por Miller era diferente por ser totalmente plausível. Somava o medo das classes dominantes em perder seu espaço, atrelado a um caos climático que reduziria a pó boa parte dos recursos naturais. Mesmo sendo ficção, Mad Max 2, com suas tribos pós-urbanas, sua violência irrefreada e seu retrato da humanidade se virando com o as sobras de um mundo em frangalhos, tornou-se o modelo de praticamente toda produção posterior que abraçava um conceito similar, de dúzias de filmes B, principalmente nos anos 80 (Wheels of Fire, Stryker, The New Barbarians, o Cyborg com Van Damme, é só escolher), a candidatos a blockbuster como Waterworld. Lançado nos Estados Unidos como The Road Warrior, já que pouca gente havia visto o primeiro Mad Max, o filme é um clássico moderno, o melhor da trilogia original e um dos mais eletrizantes filmes de ação de todos os tempos.

Mad Max Além da Cúpula do Trovão, de 1985, é um animal diferente. Mel Gibson já havia começado sua carreira em Hollywood. Ao contrário das aventuras anteriores, o nome e o rosto do astro já estampavam o cartaz do filme. Quando a produção começou, George Miller ainda estava abalado pela morte do produtor Byron Kennedy, seu parceiro nos filmes anteriores, em um acidente de helicóptero em 1983. Miller terminou dividindo a direção com George Ogilvie, e o resultado é uma aventura irregular, que basicamente repete os beats do filme anterior, com uma sociedade ameaçada por uma força maior – no caso, crianças e adolescentes vivendo em um oásis no deserto, que terminam na mira da governante de uma "cidade" que segue regras barbáricas  –, culminando em uma caçada motorizada pelo deserto. A trama está situada quinze anos após Mad Max 2 (e duas décadas depois do filme original), com uma nova geração não conhecendo nada além de uma Terra devastada.

Max e as crianças do irregular, ainda que explosivo, Além da Cúpula do Trovão

Realizado com dinheiro de Hollywood, o filme mais fraco da trilogia original também se tornou o mais popular, esbarrando em 40 milhões de dólares nas bilheterias americanas. Tina Turner contribuiu como atriz, no papel da governante da cidade que tenta retomar o rumo da civilização, e também com a popularíssima canção-tema, "We Don't Need Another Hero". Gibson, confortável em seu papel de astro, tiraria dois anos de férias e voltaria em 1987 com Máquina Mortífera, tornando-se um dos maiores astros do cinema de todos os tempos. Apesar dos percalços, Cúpula do Trovão foi fiel à sua ambientação pós-apocalíptica e à tarefa de ir além das situação mostradas antes – a queda da civilização, seguida de sua descida à selvageria e, finalmente, a uma tentativa de retomada, ainda que equivocada. Assistir aos três filmes na sequência é uma experiência fascinante em progressão de ideias e injeção de recursos, mesmo que o terceiro filme tenha sido prejudicado por uma tragédia. Mad Max: Estrada da Fúria chega aos cinemas, três décadas depois, para mostrar que um visionário como George Miller, mesmo em meio a um cinema transformado em produto, recusa-se a perder sua voz.

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.