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Lugar de fã é apoiando (ou não) a obra. Fora disso, é bullying e censura

Roberto Sadovski

07/06/2016 13h24

O Capitão América agora é um vilão. O Universo DC está sofrendo (mais um) renascimento. A equipe de Rogue One, filme ambientado no universo Star Wars, prepara-se para rodar cenas adicionais. A Fox coloca no billboard de divulgação de seu X-Men: Apocalipse, uma imagem com o vilão do filme atacando uma de suas protagonistas. Mais um dia normal na cultura pop, certo?

Bom, mais ou menos. As últimas semanas tem sido mais estranhas que o habitual para quem acompanha filmes, séries ou histórias em quadrinhos. Não por decisões de seus autores/produtores, mas pela reação de um determinado tipo de fã por guinadas em personagens, etapas na produção de um longa ou estratégias de marketing. Foi-se o tempo em que fãs amavam ou odiavam o que acontecia em torno de seu objeto de desejo e seu protesto se resumia a reclamar um monte e, ocasionalmente, fechar a carteira. Empoderados pelas redes sociais, eles se acham no direito de interferir no trabalho de um artista, bater boca, exigir mudanças no ato e, em alguns casos, ameaçar de morte.

Kathy Bates como Annie Wilkes, a fã maluca de Louca Obsessão

É o "fã Annie Wilkes", termo disseminado pelo blogueiro americano Devin Faraci, do site Birth Movies Death, para os mais xiitas. A referência é a personagem de Misery, romance de Stephen King levado ao cinema em 1990 como Louca Obsessão. Na história, Paul Sheldon (James Caan) é um escritor de romances açucarados que, para mudar o foco de sua obra, decide matar sua personagem mais famosa, Misery Chastain. Um acidente de carro o coloca sob os cuidados de Annie (Kathy Bates), não por acaso a maior fã de Misery. Ela lê a prova do livro final que ele levava à sua editora e, revoltada, exige que Sheldon escreva um novo livro, ressuscitando a heroína. O pedido não é pacífico, envolvendo manter o escritor numa cama, ameaçado com vilência extrema, e imobilizado após Annie arrebentar seus tornozelos com uma marreta.

Não seria estranho, então, ver um #SomosTodosAnnieWilkes ao lado de cada reação contrária ao destino de Steve Rogers, o Capitão América. Em sua nova série mensal, o herói recupera a juventude (o soro que o manteve jovem desde a Segunda Guerra havia perdido o efeito) e volta a combater o mal. No último painel do gibi, porém, o Capitão atira um aliado de um avião em pleno voo, olha para outro cativo e solta um "Salve a Hydra", mostrando sua aliança à organização criminosa iniciada antes ainda da ascenção do Nazismo. A conclusão foi uma só: o Capitão, em mais de 75 anos de gibis, sempre foi um vilão, infiltrado entre os heróis com algum propósito nefasto.

Uma frase e BUM! O Capitão América agora é um vilão!

Não demorou para o twitter do roteirista Nick Spencer ser inundado por mensagens de ódio e indignação, com acusações de ele ter pervertido a memória dos criadores do herói, Joe Simon e Jack Kirby, e o feito por puro choque. O editor da Marvel, Tom Brevoort, garantiu que é para valer, e não fruto de clonagem ou lavagem cerebral. O resultado? Brevoort foi ameaçado de morte por um leitor que se diz ex-fuzileiro naval, que lhe mandou uma mensagem encerrada com um "Não importa onde, não importa quanto tempo demore, mas vou lhe tirar a vida".

Pode ser extremismo, mas em meu feed no facebook, alimentado por muitos leitores de quadrinhos, a reação foi parecida, com fãs profetizando o fim da Marvel e a destruição do Capitão América. Mas essas pessoas precisam prestar mais atenção à louça acumulada em suas respectivas pias. Afinal, não passa de mais uma trama que serve, em primeiro lugar, para chacoalhar o status quo e levar o personagem a novos caminhos. Ou seja, nada mais positivo. Quando o Homem-Aranha teve sua mente tomada pela do Dr. Octopus, que assumiu a identidade de Peter Parker e se tornou um "Homem-Aranha Superior", a gritaria foi semelhante. Mas, no fim, a trama desenvolvida pelo roteirista Dan Slott foi uma das melhores que o Aracnídeo teve em muitos anos – e ele já voltou a ser Peter Parker, claro.

Elsa de Frozen: alguns fãs, vai saber o motivo, querem que ela seja lésbica

Indignação com uma história que vai de encontro com uma certa zona de conforto existe de longa data. A diferença agora é justamente a internet. Vozes anônimas empoderadas por seu alcance e proteção por trás de um teclado deixaram o trabalho artístico mais complicado, principalmente quando o produto desperta muita paixão. Tudo bem não concordar com o rumo que uma editora dá a um personagem. Exigir sua mudança, no entanto, é bullying e censura ao mesmo tempo. A verdade é que lugar de fã é apreciando ou não uma obra, e não com o dedo cutucando seus autores para atingir sua própria satisfação. A longo prazo, o resultado seriam histórias deficientes, fruto de um medo corporativo em desagradar sua base de fãs – mesmo que os mais estridentes sejam uma minoria.

É o caso da animação Frozen e do novo X-Men: Apocalipse. O sucesso da Disney deve logo ganhar uma continuação, com mais destaque para a heroina Elsa. Foi o que bastou para uma minoria bastante vocal lançar uma "campanha" exigindo que Elsa, vai saber o motivo, seja lésbica e arrume uma namorada. Verbalizar um desejo é saudável, mas quando a coisa vira bandeira de uma minoria, aí o problema é outro. E se os responsáveis por Frozen não acharem uma boa idéia abordar a sexualidade da personagem, é certo que os gritos de "machistas" e "homofóbicos" vão ecoar – uma polêmica nascida literalmente do nada.

Apocalipse e Mística: violência contra a mulher ou quebra-pau mutante?

A celeuma em torno do poster de X-Men: Apocalipse, com o vilão erguendo a mutante Mística pelo pescoço, é ainda mais absurda. Com billboards espalhados por Los Angeles com essa cena em particular, retirada do filme, um grupo na internet passou a associar a imagem com algum tipo de endorso para a violência contra a mulher. A atriz Rose McGowan logo jogou mais lenha, dizendo que era um problema comparável a colocar um homem branco sufocando um negro, ou um hetero apertando o pescoço de um homosexual. O problema, diz, é a "imagem fora do contexto". Eu imagino qual seria um outro contexto de um vilão azul atacando uma heroína igualmente azul para vender uma fantasia sobre heróis e vilões mutantes. A Fox não quis alimentar a polêmica totalmente sem sentido, pediu desculpas e disse que retiraria os anúncios. Mas, ei, no filme Apocalipse continua enchendo Mística de bordoada. Isso não é violência contra a mulher: é quebra-pau num filme de super-heróis.

O fato de alguns fãs se sentirem no direito de interferir no trabalho de criadores é preocupante, pois inverte as regras da própria produção cultural. Não seria mais a voz de um artista a prevalecer, e sim de um grupo barulhento determinado a atender unicamente suas próprias prerrogativas. Arte não importa – importa a birra funcionar. O grande problema é que o enunciado "o cliente tem sempre razão" não funciona quando o objeto são trabalhos criativos. Neste caso, o "cliente" é uma massa amorfa e diversa, sem foco e com centenas de agendas diferentes. O melhor que um artista pode fazer é ignorar os gritalhões e seguir em frente. Lembro da capa alternativa de um gibi da Mulher-Aranha produzido pelo mestre Milo Manara, que trazia a heroina subindo um telhado. Seu traje, praticamente pintado à pele – exatamente a visão de Manara sobre super-heróis, não importa o sexo. Mas bastou para grupos feministas se inflamarem contra a Marvel, que pediu mil desculpas e recolheu a arte. Não entendo essa "liberdade de expressão" que só funciona para interesses específicos.

Com este desenho da Mulher-Aranha, Milo Manara quebrou a internet…

A impressão é que temos mesmo uma multidão de "Annie Wilkes", marretas em punho, disposta a invadir estúdios e produtoras para moldar "seus" heróis de acordo com sua visão obtusa. Como se fossem donos dos personagens – não são, nem de longe. É colocar a DC como alvo porque seus editores e artistas decidiram usar personagens de Watchmen, de Alan Moore, na linha narrativa da série Rebirth. É dizer que o próximo Star Wars tem problemas porque sites irresponsáveis se precipitaram quanto à natureza das cenas adicionais a ser filmadas para Rogue One – uma prática, diga-se, corriqueira para qualquer produção desse porte.

Quem realmente se importa com os rumos da cultura pop e seus produtos toma sua posição de direito – a de observador – e espera os resultados. Uma história ruim é só isso: uma história ruim. O Capitão América já foi submetido a narrativas incríveis que começaram com uma ideia considerada sacrilégio pelos mais fanáticos, como a criação do Soldado Invernal, que subverteu uma das "certezas" dos quadrinhos, a que Bucky, parceiro do herói, havia morrido na Segunda Guerra. Ok, Steve Rogers é fiel à Hydra. E daí? A única coisa que importa é ser uma boa história. "Achei a ideia empolgante e me deixou curioso para acompanhar seu desenvolvimento", disparou Stan Lee, o patrono da Marvel. Um detalhe. Essa primeira edição de Steve Rogers: Capitão América esgotou nas lojas especializadas nos Estados Unidos.

A nova série do Capitão América: tiragem esgotada

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.