Imprevisível, Elle traz humor negro e violência sexual sem medo de polêmica
Roberto Sadovski
20/11/2016 23h34
Logo na primeira cena de Elle, a empresária Michèle Leblanc (interpretada por Isabelle Huppert) é atacada dentro de sua própria casa e estuprada. Logo também fica claro que os anos não suavizaram nem um pouco o autor Paul Verhoeven. Aos 78 anos, ele continua usando palavras como "provocativo", "polêmico" e "desconfortável" para descrever seu cinema. O que não surge em Elle como barulho barato: longe de Hollywood desde O Homem Sem Sombra, de 2000, e filmando na Europa onde produziu apenas um longa neste hiato (o drama de guerra A Espiã, uma década atrás), o diretor holandês não perdeu a verve para contar histórias sem pudores para jogar sal na ferida. Melhor ainda: encontrou na atriz francesa uma parceira que compartilha sua predileção por humor negro, pela perversidade e por uma certa disposição em chacoalhar as gaiolas.
Isso porque Isabelle em nenhum momento interpreta uma vítima. Seria muito fácil fazer com que Elle seguisse o caminho do "thriller de vingança", com a mulher ferida entrando num jogo de gato e rato com seu algoz, até um final triunfante. Não aqui. Com uma vida dedicada a exercer o máximo de controle financeiro e emocional sobre todos a seu redor (o filho banana, o ex-marido fracassado, a mãe envolvida com um picareta), Michèle enxerga em seu ataque um momento de descontrole que ela parece determinada a recuperar. Seu atacante passa a perseguí-la com mensagens no celular, e até invadindo mais uma vez sua casa, deixando claro que ele está sempre próximo. É quando ela troca precaução por curiosidade, transformando Elle numa disputa de poder velada, em que todos – todos! – podem se esconder por trás da máscara do estuprador.
Michèle já não é uma personagem fácil, e Huppert ainda lhe confere mais personalidade e profundidade. O diretor havia pensado em Nicole Kidman ou Sharon Stone para o papel, mas dificilmente outra atriz teria uma entrega tão completa. Após ser estuprada, por exemplo, a empresária aumenta seu apetite sexual, que já não encontra em seu amante (e marido de sua sócia e melhor amiga) um parceiro satisfatório. Longe de se esconder, ela abre ainda mais suas portas, iniciando uma amizade cheia de segundas intenções com um vizinho, por sua vez casado com uma cristã tediosa. Apesar do ataque sexual, a vida segue com mais este elemento adicionado à rotina. A aparente frieza é fruto de uma relação conturbada com seu próprio pai, preso há décadas após, sem motivo aparente, promover uma chacina pelo bairro: "Ele matou crianças, os pais, seis cães e alguns gatos… mas poupou um hamster", recorda Michèle, que na época tinha 10 anos.
O humor parece aumentar a tensão de Elle. Como o filme não segue nenhuma expecativa, fica difícil segurar as risadas nervosas. Foi assim com RoboCop, em que Verhoeven transformou um filme de ação numa distopia sobre a venda do poder policial e a perda da humanidade. Foi assim com Tropas Estelares, em que ele transformou um romance de ficção científica com tintas fascistas numa alegoria militaresca e xenófoba, com um elenco de catálogo de moda, em uma batalha espacial com uniformes e bandeiras que faziam uma alusão nada sutil ao nazismo. Elle poderia ser um thriller erótico, mas ele vai além não só porque a intenção do diretor é outra, mas também porque ele mesmo realizou o último do gênero do cinemão mainstream com Instinto Selvagem.
Elle é, afinal, sobre perda de controle – e o que alguém que vive sob sua bandeira é capaz de fazer para recuperá-lo. É sobre o que acontece quando uma pedra arremessada num lago causa ondulações. Sobre ação e reação. Sobre o poder do desejo, o fetiche com a violência. Sobre o voyeurismo de seus personagens que termina em choque com a nossa própria vontade de espiar a podridão do vizinho. Não é um filme fácil. Ao deixar de mostrar o que a platéia possa esperar, porém, Verhoeven entrega o exatamente que ela precisa: um filme que não dá respostas, mas estimula perguntas; que não aponta caminhos, mas pede uma reflexão. Que incomoda, provoca e polemiza.
A polêmica, claro, vem da voz de uma minoria ruidosa que, obviamente, não entendeu nada. Se RoboCop era "violento demais", se o herói de Instinto Selvagem era "frágil demais", se Showgirls tinha "sexo demais", Elle foi rotulado como um filme que "glamuriza a cultura do estupro". Acho que foi demais para os suspeitos de sempre ver um diretor (homem, branco, hetero) virar o conceito de "empoderamento feminino" ao avesso e dar à sua personagem um caminho oposto ao "senso comum" – o vitimismo, a introspecção, os gritos por justiça. Afinal, ela parece gostar do equilíbrio de poder que é estabelecido com seu atacante. Mas Elle não é, definitivamente, sobre um estupro: é sobre personagens complexos emaranhados numa mistura de sexo, desejo e violência. Nas mãos deste gênio que precisa produzir mais, é também um dos melhores filmes que o cinema entregou este ano.
Sobre o autor
Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".
Sobre o blog
Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.