Obra-prima, A Forma da Água é história de amor poderosa com um monstro
Roberto Sadovski
06/10/2017 05h44
Guillermo Del Toro adora brincar em sua caixa de areia. De sua estreia em Cronos ao reconhecimento internacional com O Labirinto do Fauno, o diretor mexicano usa seu arsenal de truques, refinando suas referências e criando mundos de beleza delicada, habitados por criaturas arrancadas de sonhos. Às vezes a fórmula desanda, como o pesado, auto indulgente e repetitivo Colina Escarlate. Outras, cada elemento encontra o equilíbrio perfeito entre o fantástico e o humano, com Del Toro agindo como um maestro cuidadoso, dosando a fusão dos dois mundos de forma elegante e, por fim, arrebatadora. Quando isso acontece, o resultado é uma pequena obra prima de beleza ímpar como A Forma da Água, filme escolhido para abrir o Festival de Cinema do Rio e que chega aos cinemas em janeiro do ano que vem.
Não é de hoje que o cinema de Del Toro é pautado por sua paixão por monstros. A cada filme, as criaturas que surgem de sua imaginação entrecortam narrativas que as colocam em choque com o mundo "normal". Mesmo ao trabalhar com material que não é de sua autoria, como os dois Hellboy, o cineasta encontra espaço para firmar sua assinatura. A Forma da Água vai além. Travestido como um thriller ambientado no auge da Guerra Fria, Guillermo criou uma história de amor poderosa que não tem o menor receio em abraçar a polêmica. Afinal, os amantes em questão são Elisa (Sally Hawkins, deslumbrante), que toca a vida sob a sombra que uma tragédia que lhe roubou a voz e amplificou sua introspecção, e uma criatura anfíbia que compreende a incompletude de sua existência – é como o romance de Edward Mãos de Tesoura, só que visto sob o prisma de O Monstro da Lagoa Negra.
Guillermo Del Toro trabalhando duro no set de A Forma da Água
Elisa trabalha num laboratório militar e enamora-se da criatura, que é supervisionada pelo cientista interpretado por Michael Stuhlbarg e torturada pelo militar linha dura vivido por Michael Shannon. Del Toro não é delicado ao estabelecer quem é o verdadeiro monstro da história – e nem precisa, dado seu afeto pelos seres inumanos. O que ele faz em A Forma da Água é deixar que a história eleve-se sobre o visual fantástico, fazendo com que a brilhante direção de arte e o olhar apurado para cada detalhe em cena não seja mais importante do que a narrativa – e suas sutilezas. O resultado é um filme verdadeiramente arrebatador, mas de forma completa, e não pelos predicados de suas partes. E mesmo com os aplausos merecidos para Sally Hawkins, para Richard Jenkins (que faz seu vizinho, um artista solitário e solícito) e para Octavia Spencer (elevando o volume de sua personagem em Histórias Cruzadas), é impossível desviar o olhar sempre que a criatura está em cena – não só pelo brilhante trabalho de maquiagem e detalhes digitais, mas principalmente pela expressão corporal impressionante de Doug Jones, parceiro de Del Toro desde sempre.
O que mais impressiona em A Forma da Água, entretanto, é sua economia. Del Toro lima toda a gordura e faz um filme ágil, que não perde tempo em seus movimentos. Ele deixa claro desde a primeira cena que fez um filme sobre paixão, sobre repressão e sobre sexo. Se a trama não é a reinvenção da roda – Elisa deseja libertar a criatura do laboratório para impedir sua morte inevitável -, o diretor a deixa sempre ágil com diálogos enxutos (e não raro, poéticos), subtramas que firmam a fantasia em realidade (é a Guerra Fria, óbvio que temos espiões russos, um general linha dura e uma corrida por uma supremacia invisível entre as superpotências) e um insuspeito senso de humor, elemento essencial para humanizar o conjunto. Acima de tudo, ele tem em Sally Hawkins a protagonista perfeita: sem usar a voz, mas em total domínio de seu rosto e seu corpo. Só quando o filme mergulha numa cena musical tão inesperada quanto inusitada que nos damos conta do quanto que foi dito até então com o silêncio.
Sally Hawkins encara um visitante fantástico
Cineastas como Tim Burton, Peter Jackson e Sam Raimi recorrem a referências similares em cada um de seus filmes, aperfeiçoando uma pista visual, um recorte de cena, um design ou um movimento de câmera. Mais do que simples auto referência, é a formação de um estilo de reconhecimento imediato. Guillermo Del Toro, não por coincidência igualmente apaixonado por mundos de fantasia e pela construção de uma hiper realidade única, segue o mesmo caminho, refinando e aprimorando sua técnica visual ao mesmo tempo em que amadurece como contador de histórias. A Forma da Água representa seu auge como artista, um ponto de virada romântico e levemente removido do resto da humanidade, uma fábula que usa de sua beleza como engrenagem narrativa, uma poesia sobre a beleza dos monstros (ou melhor, de quem nos é diferente). Não é ao acaso que sua história sobre intolerância, truculência e ignorância, estilhaçados pela força do amor, reverbere de forma tão brutal em nosso mundo moderno cada vez mais repressor e fundamentalista. Esse, para quem ainda teima em não entender, é o poder da arte: erguer um espelho para verdades tão simples. Ter medo ou não da imagem refletida é problema só nosso.
Sobre o autor
Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".
Sobre o blog
Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.