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Religião, cura gay e amor proibido dão o tom do drama Desobediência

Roberto Sadovski

22/06/2018 04h49

Engraçado como falar de amor é difícil. Se o sentimento surge puro, a vida às vezes entra no caminho de maneira tão brutal que o próprio ato de se entregar ao amor se torna também um ato de rebeldia: ou a gente aceita como ele é, ou fugimos para bem longe. De certa forma, o delicado Desobediência é sobre um amor assim, que não pode ser contido, não importa tempo ou distância, mas também nunca pôde ser consumado. Tradição e religião também entram na mistura, que só não escorrega para o dramalhão descabido por conta da sensibilidade da direção do chileno Sebastián Lelio (Uma Mulher Fantástica) e pelo talento absoluto de seus protagonistas.

Rachel Weisz é Ronit, fotógrafa bem resolvida, dona de seu nariz que fez sua vida em Nova York. Um telefonema depois e ela está de volta em Londres, anos depois de ir embora. O motivo é o mesmo de sua partida: seu pai, um rabino influente, morreu no púlpito, o que a impele de regressar e tentar aliviar sua dor. Logo fica claro que Ronit é a "rebelde", a ovelha negra que amigos e familiares não poupam de forma passivo-agressiva com olhares atravessados e palavras duras disfarçadas de cordialidade. Quando partiu, ela também perdeu o direito de sofrer. Quem a acolhe, entretanto, é Dovid (Alessandro Nivola), amigo de infância e pupilo máximo de seu pai, que não esconde certo desconforto para lidar com a amiga. O motivo é terceiro vértice desse triângulo: Esti (Rachel McAdams), mulher de Dovid, que se apresenta cabisbaixa, passiva, reprimida. Existe fogo entre os três, uma vida de vontades e desejos e palavras engolidas em nome da manutenção das tradições.

Weisz, McAdams e Nivola entregam performances brilhantes

Porque Ronit, afinal, é a filha do rabino. E não sentou bem com o mestre ver a filha, quando adolescente, beijar a amiga de maneira tão apaixonada. Palavras duras foram trocadas, Ronit trocou a sobriedade de Londres pela exuberância de Nova York, nunca mais falou com o pai e a vida continuou. O reencontro com Esti reabre uma década de emoções reprimidas, uma narrativa delicada que Lelio conduz com sutileza. Porque todo o subtexto de Desobediência é sobre compreender a estrutura da religião, tentar desvendar sua concepção e aceitação do amor e, principalmente, questionar a fé…. fé essa que encontra sua tradução no trio de protagonistas ao representar, a seu modo, rejeição, resignação e controle. O diretor, portanto, permeia seu filme com uma melancolia conformista que nunca abre espaço para explosões emocionais.

O que ganha espaço, entretanto, é a discussão sobre como, em pleno século 21, muitos ainda se deixam levar por ensinamentos desenhados em outra época, mas que precisam acompanhar o passo do tempo. Até porque o fardo não recai sobre Ronit, que sempre cultivou um espírito livre, e sim sobre Esti, que nunca encontrou a voz para reafirmar sua orientação: ao contrário da amiga distante, ela sim é lésbica, e casou com seu melhor amigo para, nas palavras que o rabino proferiu na época, "curar" o desejo enviesado. Conta a favor de Desobediência a escolha em Lelio não transformar o texto num panfleto religião vs. sexualidade. Ele tem, entretanto, a coragem de levantar a questão no ambiente carregado de tradição e rituais que é a comunidade judaica ortodoxa em que a trama se desenvolve. Seria interessante até dar mais voz a Dovid, personagem de Novila, que termina negligenciado ante suas duas companheiras de cena.

O diretor Sebastián Lelio no set de Desobediência

Mas é impossível reclamar quando vemos o trabalho brilhante de Rachel Weisz e Rachel McAdams. Se sua caracterização no texto pode parecer uma concessão a estereótipos, as atrizes entregam tanta verdade aos papéis que quaisquer tropeços em sua composição são imediatamente relevados. Como Ronit, Weisz vai da culpa à indignação e ao arrependimento, sem nunca perder o foco de quem ela é. Mas é McAdams quem surpreende como Esti. Ela opta por não abraçar um arquétipo reprimido, revelando aos poucos camadas de sua personagem, suas motivações e escolhas, potencializadas pela erupção de desejo quando ela coloca mais uma vez os olhos na amiga que partiu, o que destrói seu "casamento feliz". Não é só amor: é a materialização da possibilidade de fuga daquele mundo, é enxergar que existe uma escolha mesmo quando não apareça nenhuma.

De certa forma, Desobediência me trouxe ecos de A Testemunha, no sentido de voltar sua lente para uma comunidade fechada, que vive com regras e preceitos próprios, anacrônicos em relação ao mundo exterior. Lelio toma cuidado em não demonizar as tradições judias, concentrando-se no tema atemporal do amor proibido e em suas consequências: quem não concorda com as "regras" ortodoxas está livre para partir, sabendo que a moeda de troca é a perda de seu lugar na comunidade. Ronit e Esti traçaram caminhos tão diferentes, mas terminam com o mesmo sentimento de arrependimento, incertas de como será o futuro. Sebastián Lelio não traz respostas em Desobediência. Ele opta por concluir a jornada de seus personagens não com um clímax catártico, mas com uma resolução elegante para um dilema moral complexo. Como deve ser em toda boa história de amor.

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Sobre o autor

Roberto Sadovski é jornalista e crítico de cinema. Por mais de uma década, comandou a revista sobre cinema "SET". Colaborou com a revista inglesa "Empire", além das nacionais "Playboy", "GQ", "Monet", "VIP", "BillBoard", "Lola" e "Contigo". Também dirigiu a redação da revista "Sexy" e escreveu o eBook "Cem Filmes Para Ver e Rever... Sempre".

Sobre o blog

Cinema, entretenimento, cultura pop e bom humor dão o tom deste blog, que traz lançamentos, entrevistas e notícias sob um ponto de vista muito particular.